A NOTÍCIA, 10/04/2015 | 08h31
Roelton Maciel
ENTREVISTA. 'Estado deixa de lado a segurança pública de Joinville', diz juíza
Titular
da 1ª Vara Criminal de Joinville há quase três anos, Karen Francis
Schubert Reimer critica o desequilíbrio entre as estruturas do Poder
Judiciário em Joinville e na Capital

Karen
Francis Schubert Reimer fala das condições inadequadas para as polícias
Civil e Militar na mais populosa cidade de SC Foto: Leo Munhoz /
Agencia RBS
Há quase três anos,
quem bate o martelo ao decidir as sentenças dos acusados de homicídio e
tentativa de homicídio em Joinville é a juíza Karen Francis Schubert
Reimer, titular da 1ª Vara Criminal da cidade, onde são julgados os
chamados crimes contra a vida. Desde maio de 2012, mais de 160 sessões
de júri popular foram decididas com a participação da magistrada.
Hoje,
outros quase 280 processos que ainda podem ir a júri são mantidos aos
cuidados dela. Além de uma pilha com mais 1,7 mil ações envolvendo
crimes de outra natureza, que dividem as atenções em seu gabinete.
Diante de uma demanda crescente na esfera criminal, a juíza é categórica
ao afirmar que Joinville precisaria ter, pelo menos, o dobro de juízes.
A
mais populosa cidade de SC, compara, conta com 28 magistrados, enquanto
Florianópolis tem 68 juízes em atuação. Crítica quanto à atenção do
Estado para Joinville no que diz respeito à segurança pública, Karen
entende que a cidade está “deixada de lado”.
Numa
conversa de cerca de uma hora com a reportagem de “A Notícia”, a
magistrada ainda falou sobre o recorde recente de homicídios,
impunidade, eficiência das leis e maioridade penal. Também apontou
guerra entre facções na cidade e fez o alerta: se nada for feito, a
tendência é piorar.
A Notícia – O Estado deixa a desejar quanto ao aparato policial em Joinville?
Karen – Totalmente. Na Capital, o efetivo da Polícia Civil é maior do que o efetivo das polícias Civil e Militar juntas em
Joinville.
A gente não tem como lidar com a segurança pública sendo tratado de
forma tão desigual. Esse é um dos grandes motivos da criminalidade. As
penas têm de ser severas, mas o que faz diminuir a criminalidade não é a
severidade da pena e, sim, a certeza da punição. Quando há a certeza da
impunição ou quase certeza, a impunidade gera uma criminalidade
desenfreada. Tenho convicção de que o fato de a segurança pública em
Joinville ser deixada de lado pelo governo do Estado é um dos fatores
que aumentam a criminalidade.
Papel do Estado
Outro
fator é não conseguir cumprir a legislação porque o Estado não cumpre a
parte dele. Mandamos prender, mas não controlamos o presídio, nem a
penitenciária. Eles não constroem presídios, penitenciárias, locais para
o preso trabalhar. O Judiciário não tem como fazer a parte dele. A
maioria dos presos faz questão de trabalhar, até porque se ganha a
remissão. Só que o Estado não proporciona isso. Também há um
protecionismo muito grande. As leis protegem muito aquele que pratica
atos contrários à lei. O devido processo legal é necessário, cumprir a
Constituição, também. Digo proteger no sentido de achar brechas para que
a pessoa não tenha de cumprir aquilo que é preciso cumprir. Tudo isso
para tentar dar uma solução paliativa para a falta de espaço, de
condições no presídio.
Direitos humanos
Sou
totalmente favorável aos direitos humanos. É indispensável. Só acho que
deveriam ser chamados de direitos civis. Toda pessoa que luta pelos
direitos humanos deveria lutar pelo devido processo legal e para que as
prisões fossem locais onde a pessoa fosse trabalhar, estudar e cumprir a
pena de forma decente. Não entendo que direitos humanos seja colocar a
pessoa na rua. Nunca recebi um pedido de direitos humanos para melhorar a
situação de um preso, sempre para soltar.
AN – A fragilidade do sistema impacta na reincidência?
Karen
– Diretamente. Temos vários tipos de pessoas que infringem a lei.
Algumas delas, se tiverem oportunidade, podem eventualmente sair do
mundo do crime. Outras não têm condições, encaram o crime como modo de
vida. É uma opção, não uma falta de condição. Dizer que a injustiça
social é a causa do crime é a maior injustiça que se comete com os
milhões de pobres e honestos. Se isto fosse verdade, não teríamos
petrolão. Praticamente todos os estelionatários têm uma boa formação.
É
uma distorção, uma romantização absurda dizer que a criminalidade tem
relação com a falta de condições. Pode-se dizer que, no Brasil, a grande
maioria dos criminosos é pobre. Sim, porque a grande maioria dos
brasileiros é pobre. Tudo é uma proporção. Mas temos as exceções. Aquela
criança que não teve nenhuma chance caiu nas drogas muito cedo. Essa
pessoa poderia, talvez, ter uma escolha diferente. Essas pessoas, em um
ambiente prisional onde fossem estudar, trabalhar, ter tratamento, nesse
caso acredito que se recuperam.
Reeducação
Dizer
que o único objetivo da pena é reeducar acho até um insulto para o
preso. Um preso de 30 anos de idade, que diz ter o crime como profissão,
dizer que precisa reeducá-lo é uma ofensa. Na verdade, aquela é uma
opção daquela pessoa, ela sabe o preço a pagar se for pega. Se ela
souber que as chances de precisar cumprir esse preço são baixas, isso
vai estimular a pessoa a praticar mais crimes.
Pena de morte
Até
hoje não consegui ser a favor, principalmente por já ser comprovado que
não diminui a criminalidade. O que diminui é ter certeza de que será
punido. Colocar um radar no sinaleiro é muito mais eficaz do que
instituir pena de morte para quem furar o sinal e isto não ser cumprido.
No caso do Brasil: saber que, mesmo matando 20 pessoas, o máximo de
pena é 30 anos, mas, com todos os benefícios, cai para 15. Isto tem que
mudar.
AN – Há casos, mesmo nos júris, em que o réu é
condenado, mas continua em liberdade. Como isso contribui para a
sensação de impunidade?
Karen – Essa é a nossa
garantia do devido processo legal. Ainda que eu não concorde com alguma
lei, vou cumpri-la porque a minha profissão é cumprir a lei, não fazer a
lei. O juiz não tem o direito de julgar diferente da lei quando não
concorda, a não ser que a lei seja inconstitucional, algo assim.
No
Brasil, gravidade do crime não é motivo de prisão cautelar. Diz a lei o
seguinte: se alguém esquarteja três pessoas hoje, mas tem residência
fixa, bons antecedentes e trabalha, isto significa que ela pode ficar
solta. Porque, na nossa lei, a prisão é uma garantia para o processo,
para que chegue ao fim. A gravidade não é motivo, sozinha, para a
decretação da prisão. Isto para o flagrante. Imagina, então, alguém que
já responda em liberdade e você ter de prender ao final? No nosso
sistema, você só é considerado culpado depois do trânsito em julgado da
decisão. Há recursos e mais recursos, isto pode levar anos.
Debate
Se
a população não concorda com algumas considerações da nossa lei, isto
deveria ser objeto de debate e ser levado ao Legislativo. Não existe
esse debate com a sociedade de qual tipo de sociedade queremos ter.
Hoje, temos uma sociedade muito permissiva em relação ao cometimento de
crimes e à punição desses crimes.
AN – Há momentos em que o magistrado se sente impotente?
Karen
– Todos que trabalham com a Justiça, seja de um lado ou de outro, em
algum momento sente o conflito entre o seu convencimento pessoal e o que
a legislação diz. Entendo que, se aquela legislação for constitucional,
eu não tenho o direito de não aplicá-la. Não é o meu pensamento que tem
de prevalecer sobre a lei. Temos algumas penas adequadas, que não
precisam ser aumentadas, legislações que são boas. Não fico em conflito o
tempo inteiro. Temos boas leis, o problema é que elas não são
cumpridas. Nossos problemas são de estrutura, de pessoal. Principalmente
da parte do Executivo.
Comparativo
Joinville
tem 28 juízes, titulares e substitutos. A Capital tem 68. Aqui, a 1ª
Vara Criminal, que é privativa do júri, mas não exclusiva, tem 1.996
processos, dos quais 278 são do júri. Na Capital, a vara é exclusiva do
júri e tem 170 processos. Como que a gente pode prestar um trabalho com a
qualidade que se espera? Temos a mesma quantidade de juízes que
Tubarão, Lages. Isto é histórico. Joinville sempre foi deixada de lado
pelo Estado em todos os órgãos. O cível é abandonado, o criminal é
abandonado. A gente acaba enxugando gelo, com quase um terço do efetivo.
Joinville precisaria do dobro de juízes. E qualquer vara nova que venha
tem de ser cível. Lá, a demanda é maior. Mas temos demanda para uma
vara privativa do júri, mas é um sonho que duvido que será realizado.
AN – A senhora tem preocupação particular com a imagem das corporações policiais.
Karen
– A polícia é a profissão que põe a vida em risco. Existe corrupção?
Existe, assim como em todos os meios. Mas parece que, no Brasil, existe
uma tendência de só dar importância ao policial quando ele faz algo
errado. Não se veem homenagens, uma comunidade aplaudindo o trabalho
policial. Vejo com preocupação a tendência de pegar um policial ruim e
jogar essa imagem para toda uma corporação extremamente dedicada, que
trabalha sem estrutura, com efetivo absurdamente abaixo do ideal. E
colocam o peito na rua para defender a população, em troca da falta de
reconhecimento e de um salário baixo. Temos que aprender a valorizar
nossos heróis.
AN – Joinville alcançou um recorde
de homicídios no ano passado, que pode ser superado neste ano. Como a
senhora avalia os números?
Karen – Há uma ligação direta com a
sensação de impunidade. Não temos efetivo policial para investigar ou
para colocar na rua e prender. Eles (criminosos) sabem disso, é um
incentivo ao crime. Se tivéssemos três vezes mais policiais, duvido que
tivéssemos esses números. Se tivéssemos a quantidade de policiais que
Florianópolis tem nas ruas, não teríamos esses números. Está diretamente
ligado ao fato de Joinville estar totalmente deixada de lado no quesito
segurança pública. E a tendência é piorar.
AN – Qual o perfil de quem pratica homicídio em Joinville?
Karen
– Parece que são levas. Cada ano muda o perfil da maioria. A maior
parte é vinculada às drogas, isso não muda. Ano passado foi o ano da
Maria da Penha. Tivemos um número absurdo de homicídios e tentativas,
também de mulheres tentando matar o marido. Neste ano, estamos com uma
guerra de facções. As organizações criminosas estão liderando a maioria
dos crimes. A criminalidade havia baixado dois anos atrás no Jardim
Paraíso porque havia um trabalho de segurança pública naquele local.
Depois, isto foi deixado de lado e a criminalidade está voltando.
AN – Como o Judiciário pode dar conta de tantos casos?
Karen
– Vou continuar batalhando para dar conta, nunca usei o excesso de
trabalho como desculpa. Mas talvez alguém tenha que fazer alguma coisa.
Se a polícia conseguisse investigar todos os crimes cometidos, não faço
ideia do que poderia acontecer com o Judiciário. O trabalho policial é
excepcionalmente bem-feito considerando as condições de trabalho. O caso
Vitória Schier (adolescente estuprada e morta), por exemplo, teve um
trabalho fenomenal, dá para escrever um livro. Há outros casos em que se
poderia identificar a autoria se houvesse equipamentos, um banco de
dados de DNA, de digitais, o que se vê em filmes.
Câmeras
Coloquem
câmeras de segurança. As pessoas estão passando a ser condenadas a
partir de imagens das câmeras. A partir do momento em que há condenações
com essa prova, eles (criminosos) vão passar a tomar cuidado para não
agir onde há câmeras. Desvendamos muito crimes com câmeras.
AN – Qual a sua avaliação quanto à redução da maioridade penal?
Karen
– Continuo achando que a solução não é diminuir a maioridade. Não acho
que colocar esses rapazes de 16 anos, ainda que criminosos, junto do
pessoal experiente seja benéfico para a sociedade. O que tem de mudar é o
ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente). É preciso tratar de forma
diferenciada os crimes graves dos que não são. Os adolescentes que são
abusados, sem possibilidades, daquele que é psicopata. Tem que existir
um tratamento diferenciado para os jovens que cometem crimes graves. É
preciso mudar o ECA, não o Código Penal. Hoje, no Paranaguamirim,
crianças de oito a nove anos estão vendendo drogas. Começou a se aplicar
mais medidas restritivas aos adolescentes. Aí, agora estão pegando quem
não responde mesmo, as crianças. Então, diminuir a maioridade não vai
diminuir a criminalidade. Mas se o ECA fosse cumprido à risca, também
não seria esse absurdo que acontece hoje.