Faltam juízes em quase metade das comarcas do Rio Grande do Sul. Dos 165 municípios gaúchos dotados de foro para receber as demandas judiciais de sua região, há vagas para magistrados em 79 (47,8%). No total, são 235 cargos de juiz de primeiro grau desprovidos em todo o Estado — uma carência de 27% na força de trabalho da categoria. 

Tribunal de Justiça do Estado (TJRS) assegura que nenhum cidadão fica sem atendimento, mas reconhece que o déficit de pessoal acaba gerando morosidade no andamento dos 5,5 milhões de processos. Em geral, os postos vagos acabam cobertos por outros juízes da mesma comarca.  

Todavia, em 32 fóruns espalhados pelo Estado, não há nenhum juiz titular. Em oito deles, há duas vagas, ambas desocupadas. Na maioria dos casos, o substituto atua numa cidade próxima e uma vez por semana viaja para atender a comarca vizinha. Ao todo, atualmente, no Rio Grande do Sul, um contingente populacional de 850 mil pessoas, distribuídas em 74 municípios, depende da visita semanal de uma autoridade judicial.  Em 19 de janeiro, as principais lideranças da sociedade de Caçapava do Sul se reuniram num evento para inaugurar o novo fórum local. Houve discurso do então presidente do TJRS, Voltaire de Lima Moraes, do prefeito Giovani Amestoy e de outras autoridades.  

Ao final da solenidade, restou um prédio moderno, sede de duas varas, mas sem um único juiz titular para despachar os mais de 15 mil processos em tramitação. O diretor do foro, Diego Carvalho Locatelli, é titular da comarca de Dom Pedrito, a 208 quilômetros de distância, e só atende em Caçapava às quintas-feiras.  

— A gente lutou tanto para conseguir a segunda vara e agora não tem juiz em nenhuma das duas. O doutor Diego é incrível, atende sempre que pode, mas as urgências acabam tomando a frente, principalmente dos processos cíveis. É complicado porque em cada ação está guardada a vida das pessoas — desabafa a advogada Cristiane Lorenzen.  

A situação é semelhante em Herval, no sul do Estado. Sem juiz titular há seis anos, a comarca ainda enfrenta escassez de pessoal. Atualmente, há apenas quatro servidores, dois deles, estagiários.  

— Os advogados fazem até procedimentos cartoriais, como furar as páginas dos processos. A gente entende a dificuldade, mas o sentimento é de que tudo poderia funcionar melhor — afirma o advogado Jaisel Rodrigues de Freitas.  

Para a juíza Vanessa Antunes Ferreira, titular em Arroio Grande e substituta em Herval, o acúmulo de funções acaba tomando tempo que poderia ser direcionado aos processos. Toda semana, ela dedica dois dias à comarca vizinha, um para sanar questões administrativas e outro para as audiências. Por vezes, em função das férias de colegas, ela chega a responder também pela .  

— Aqui na fronteira tem muita transferência, então chego a acumular as três comarcas. Mas me orgulho de dizer que estou totalmente em dia com meus processos. O complicador maior é a falta de servidores, pois junta muita coisa a ser feita e acaba sobrecarregando todo mundo — conta Vanessa.  

A maior comarca do Estado a funcionar desprovida de juízes titulares é Parobé, município de 58 mil habitantes situado no Vale do Paranhana. Segundo o presidente da subseção gaúcha da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Gustavo Amoretti, um processo de usucapião em que atua tramita há 20 anos, sem conclusão.  

— Já sou o segundo advogado da causa e não anda. Meu cliente tem 70 anos de idade. Tenho medo que aconteça alguma coisa com ele e o processo siga sem fim. Aqui do lado, em São Francisco de Paula, por exemplo, tem um juiz só, titular, e ele chega a dar duas decisões no mês no mesmo processo. Eu tenho ações aqui em Parobé que ficam um ano sem decisão nenhuma — afirma Amoretti.  

Das 235 vagas desprovidas no Estado, 110 são de juiz substituto, cujo trabalho é justamente assumir lacunas da magistratura. Outras 123 ficam em unidades jurisdicionais específicas e os dois postos restantes são de juiz-corregedor, cujo provimento depende de decisão do corregedor-geral da Justiça.

“Nenhuma comarca fica sem juiz” 

Entrevista: Geneci Ribeiro de Campos, juíza-corregedora e vice-coordenadora da Corregedoria-Geral de Justiça
Além de fiscalizar a atuação da magistratura, a Corregedoria-Geral de Justiça trabalha em ações para aprimorar a eficiência dos serviços judiciários. Vice-coordenadora do órgão, Geneci Campos reconhece as dificuldades causadas pela carência de pessoal, mas ressalta que nenhuma unidade fica sem juiz.

Por que faltam tantos juízes no Estado?
Nós temos somente um critério de ingresso na magistratura, que é o concurso público. Não há outra forma de nomear juízes. Os nossos concursos são muito concorridos e possuem um funil bastante apertado. O Judiciário está preocupado com essa defasagem e está com dois concursos em andamento, um deles em fase mais adiantada. Tivemos um atraso por conta da pandemia. É um concurso que reúne um volume muito grande de participantes e não tinha como aglomerar as pessoas em sala de aula.  

A população dessas comarcas não fica desassistida?
Não. É importante frisar que nenhuma comarca fica sem juiz. Há juízes substitutos atuando em todas as cidades onde não há juiz titular. Claro que ele tem a capacidade diminuída, pois em geral acumula duas unidades e dá prioridade às urgências. Mas ele comparece à comarca e vai atender a todas as demandas, pois todas são necessárias. Se não fossem, não haveria um processo. Onde as demandas são maiores, a nossa preocupação é prover primeiro. 

A escassez de juízes causa morosidade?
O Judiciário tem procurado alternativas para otimizar o trabalho. Tem toda uma modernização das estruturas sendo implementada visando diminuir essa questão temporal. O processo eletrônico é muito importante nesse sentido.

“A prestação jurisdicional é insuficiente” 

Entrevista: Leonardo Lamachia, presidente da seccional gaúcha da OAB
À frente da principal entidade de defesa da advocacia no Estado, Leonardo Lamachia afirma que a maior reclamação da classe é pela falta de juízes. Empossado no início de janeiro, o novo presidente da OAB-RS tem percorrido o Interior e constatado os efeitos da sobrecarga de trabalho nas comarcas. 

Quais os efeitos da falta de juízes?
A situação é muito grave. A Ordem vê esse cenário com muita preocupação. Não faltam só magistrados. Dezenas de subseções têm relatado carência de servidores. Não boto a culpa apenas no Judiciário. Tivemos a pandemia, o ataque hacker. Mas é ele quem administra, e nós temos, hoje, uma prestação jurisdicional insuficiente na Justiça Estadual. Batemos todos os recordes de reclamações por morosidade. Há muito que a advocacia diz isso, mas chegamos agora em grau muito complexo.

Como agilizar os trabalhos?
Podem começar ampliando o horário de funcionamento do Judiciário. Lá no passado, nós havíamos conquistado o expediente de manhã e de tarde. Os fóruns abriam às 9h e fechavam às 19h. A pandemia mudou tudo e, quando voltou serviço presencial, ficou das 12h às 19h. Perdemos três horas. Já oficiei o tribunal pedindo retorno do horário integral 

A tecnologia não facilita o trabalho?
Facilita muito, mas cerca de 50% dos processos ainda são físicos e ficaram parados por quase um ano, sem movimentação. As audiências virtuais também ajudam, mas devem ser opção, e não regra. Se for uma tentativa de acordo, tudo bem. Mas uma coleta de provas fica prejudicada sem a presença do juiz, não há a imponência da autoridade e há riscos à inviolabilidade da testemunha.

Carreira atrativa, mas de difícil acesso 

Com salário inicial de R$ 25.851,96, um juiz de primeira instância precisa percorrer um árduo caminho para ingressar na profissão. No último concurso realizado pelo TJRS, havia 13.297 inscritos. Destes, apenas 686 passaram para a segunda etapa. Concluídas as fases eliminatórias, 20 meses após a primeira prova, apenas 26 candidatos foram nomeados e tomaram posse como juiz. 

Dos dois concursos em andamento hoje no Estado, um está na penúltima fase, com os classificados se inscrevendo para a fase oral. O mais recente, lançado em 2019, teve a primeira prova realizada em janeiro.  

A aprovação em concurso e posterior nomeação, contudo, não significa imediata transferência do juiz para uma vara ou comarca. Durante quatro meses, os novos magistrados participam de um treinamento intensivo no TJRS, aprendendo pormenores do cotidiano jurisdicional. Historicamente, essa reposição não é suficiente para preencher as vagas abertas por aposentadoria ou pedido de exoneração dos juízes de carreira. 

Como é o concurso para ser juiz 

  • 1ª etapa: uma prova objetiva seletiva, de caráter eliminatório e classificatório
  • 2ª etapa: duas provas escritas, de caráter eliminatório e classificatório
  • 3ª etapa: sindicância da vida pregressa e investigação social, exame de sanidade física e mental e exame psicotécnico, tudo com caráter eliminatório
  • 4ª etapa: uma prova oral, de caráter eliminatório e classificatório
  • 5ª etapa: avaliação de títulos, de caráter classificatório.