A reabertura do mensalão e as duas justiças do Brasil. O novo julgamento do mensalão evidencia disparidades da aplicação da lei, que é garantida para poucos e desatenta com a massa carcerária
MAIÁ MENEZES
FLÁVIO TABAK
O GLOBO
Atualizado:20/09/13 - 13h08
Manifestação em frente ao STF, contra o segundo julgamento de doze dos vinte e cinco condenados no mensalão Jorge William / O Globo
RIO - Bem sustentada do ponto de vista técnico, a decisão do ministro Celso de Mello, que reabriu o julgamento do mensalão no Supremo Tribunal Federal, deixou evidentes as distorções que assolam o sistema judiciário brasileiro. Mais do que frustrar a expectativa de punição de crimes de corrupção — um dos eixos centrais de indignação das multidões que tomaram as ruas do país em junho —, a oportunidade de um “novo julgamento” para 12 dos 25 condenados jogou luz sobre os ritos e expedientes da Justiça que funcionam azeitados para uma elite, mas se arrastam para a massa do sistema carcerário brasileiro. No país, quatro em cada dez presos são mantidos no cárcere sem que a sentença haja transitado em julgado (sem julgamento definitivo).
— A decisão do ministro (Celso de Mello) foi irretocável. Mas o que gera uma certa perplexidade é que todas essas garantias discutidas no voto dele não existem em torno do condenado pobre. Essa realidade é muito distante da quase totalidade da massa carcerária. É muito comum: o sujeito fica preso preventivamente até a condenação, em cadeia lotada. Quando vem a sentença, ele já cumpriu o tempo da condenação, só à espera do julgamento. O voto é perfeito, mas não alcança a grande maioria dos casos com andamento no poder Judiciário. Temos toda sorte de dificuldades, desde o uso abusivo da prisão temporária até a dificuldade para levar nossos recursos à última instância — sintetiza o defensor público Felipe Almeida, coordenador do Núcleo do Sistema Penitenciário da Defensoria Pública do Rio.
No Brasil, há cerca de 500 mil presos. Muitos por crimes que envolvem pequenos furtos, depredação de patrimônio e brigas. A lei prevê medidas alternativas, pouco adotadas por magistrados, como prisão domiciliar, monitoramento e proibição de viajar. Mas a lentidão funciona contra o réu.
Casos da vida real deixam claro esse abismo entre as classes de réus brasileiros. Advogada e assessora jurídica do Ministério Público Federal de São Paulo, Ana Júlia Andrade Vaz de Lima acompanhou a história de uma senhora, então com 70 anos, que foi presa em São Paulo porque guardou, sem saber, drogas em casa. Ela morava sozinha num conjunto habitacional quando um vizinho pediu que ela guardasse caixas em sua casa. A polícia descobriu o verdadeiro conteúdo das caixas, e a senhora logo ficou conhecida na região como “vovó do tráfico”. Foi para a Penitenciária Feminina de Santana, onde ficou presa, provisoriamente, durante oito meses até ser absolvida. O vizinho disse que ela nada tinha a ver com o crime, mas, mesmo assim, o juiz decidiu que ela tinha que esperar presa para garantir a ordem pública, em razão da gravidade da acusação.
— Eu trabalhava à época na Pastoral Carcerária, que deu assistência. A Dona Júlia era ré primária, maior de 70 anos e com residência fixa. O próprio autor disse que ela nada tinha a ver com aquilo. Com tudo isso, ela infelizmente precisou ser absolvida para sair da cadeia. Acho importante não só dizer como a Justiça funciona mal para os pobres, mas sim que a Justiça precisa funcionar tão bem com eles como para quem paga bons advogados. Seja o José Ninguém ou o José Dirceu — alerta a advogada. — Pergunto qual é a diferença entre o caso dela com casos de corrupção que ferem os cofres públicos.
No Piauí, 74% dos presos aguardam julgamento
Coordenador nacional da Pastoral Carcerária, o padre Valdir João Silveira ressalta contradições do sistema judiciário brasileiro e o excesso de presos provisórios. Ele chama a atenção para o Piauí, estado cujas cadeias, segundo ele, têm 74% de internos aguardando julgamento, ou seja, o maior índice de presos provisórios do Brasil.
— O Conselho Nacional de Justiça encontrou pessoas presas há cinco anos aguardando julgamento. Com a pastoral, vimos um grande número de pessoas que sequer tiveram a primeira audiência. São meros suspeitos ainda. Um deles estava lá por acusação de ter roubado um bode. Em muitos casos, as eventuais condenações são menores do que o tempo esperado na prisão provisória. E não é só no Piauí — afirma o padre, ressaltando que ainda há muitas comarcas sem defensoria pública. — Quem olha por essa população? Ficam esquecidos, perdidos.
No Rio, a dona de casa Suelen Carreira de Miranda, de 23 anos, estava grávida de sete meses quando recebeu um telefonema da polícia. Seu marido, Wanderson da Silva de Oliveira, fora preso por furtar uma moto. Não era réu primário. Está preso desde 16 de dezembro do ano passado no presídio Evaristo de Moraes, em São Cristovão. Suelen desconfiou que o marido praticara o furto ao ver fraldas e roupas para o bebê escondidas pela casa.
— Ele dizia: “O bebê está quase nascendo. O que vamos fazer?”. Me dizia que estava trabalhando, depois eu comecei a ver as roupinhas escondidas. Toda quarta e todo sábado eu vou visitá-lo lá. Está muito deprimido. Ele tem que pagar pelo que fez, claro. Mas podia ser de um outro jeito. Pelo menos no semiaberto — diz Suelen, que viu uma desproporção entre a maneira como os réus do mensalão foram tratados pela Justiça e a morosidade que envolve o caso do seu marido. — Me sinto injustiçada. Eles continuam livres, nas ruas, vivendo com tudo o que há do bom e do melhor. Meu marido está na cadeia, da última vez me disse que está aprendendo a respeitar os presos, a baixar a cabeça para eles — diz Suelen.
No dia 14 de agosto, foi expedido o alvará de soltura de Wanderson. Ele segue preso, provavelmente por causa da reincidência, diz o defensor Djalma Amaro Correia, que cuida do caso. Uma condenação anterior de Wanderson, a prestação de serviços à comunidade, também por furto, poderia ser convertida no regime semiaberto.
— Mas as informações não chegam à Vara de Execuções Penais (VEP). Os órgãos do Judiciário não se comunicam de forma automática. Se fosse o Dirceu, fazendo uma comparação, toda essa decisão seria tomada de forma célere. E ele já estaria no semiaberto — sustenta o defensor.
— O preso em flagrante, sem direito a advogado, jamais vai conseguir que se protocolem todos os recursos em prol dele, como aconteceu no caso do mensalão. Ele passa no mínimo quatro meses preso e, em geral, conversa com o defensor público na hora em que consegue a audiência. São os que ficam no fim da fila da Justiça — corrobora o diretor-adjunto da ONG Conectas-Direitos Humanos, Marcos Fucs.
Especialista não vê razão para vilanizar atuação do STF
O professor da Escola de Direito da FGV no Rio Thiago Bottino concorda que a Justiça brasileira é, em geral, lenta, mas não vê motivos para que a atuação do Supremo no caso do mensalão seja vilanizada.
— O mensalão demora porque ouviu quase 400 testemunhas. Não é simples, demora muito. Acho que esse processo andou mais rápido do que a média, não gosto da demonização do Supremo — diz o professor. — A Justiça é lenta e ponto. Para crime, consumidor, cível. E não acho ruim a existência de bons advogados, mas sim um sujeito simples condenado que não tem ninguém para recorrer por ele.
O historiador Francisco Carlos Teixeira, da UFRJ, diz que é hora de a Justiça sofrer uma reforma. Ele acredita que a sensação de impunidade em relação a crimes praticados por pobres ou ricos aumenta com a decisão em torno do mensalão, mas também faz crescer na sociedade a percepção sobre os ritos do Judiciário:
— Meu medo é que isso possa contagiar o conjunto das instituições, que haja uma crença de que nada está funcionando como deveria. A Justiça brasileira é ruim, precisa de uma reforma urgente. Não seria atropelando o rito (ao não aceitar os embargos infringentes) que iria reformar. O povo brasileiro nem sabe como funciona a Justiça. É hora de colocar em discussão todo o sistema. Se há uma certa decepção da população, deveria ser estendida ao conjunto de ritos e movimentações da Justiça brasileira.
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