ARTIGOS
Flávio Tavares*
A queixa e o clamor de agora não têm razão de ser. Pior foi o dilúvio 40 dias e 40 noites, a água engolindo povo e bichos, sem protestos, sem clamor das multidões. Como criticar um castigo direto de Deus? E a vida continuou! Impávidos, resistimos a mil tropeços. Depois, chegamos a nos sentir próximos ao Paraí-so, até que o voto do ministro Celso de Mello no Supremo Tribunal, no recurso dos réus do mensalão, de novo selou a sensação de impunidade. Mas não é assim! Se o STF for célere (rápido como quem rouba, diz o ditado), o novo julgamento voltará a condenar os réus sem que as penas prescrevam ou se abrandem.
O que chama a atenção não é o ministro Mello ter demonstrado (com dicção perfeita) que a regra histórica é aceitar os “embargos infringentes”. Todo réu tem direito a defesa. Insólita é a argumentação usada, em favor “da proteção das liberdades fundamentais dos réus, de qualquer réu” – acentuou –, como se a Ação Penal 470 fosse um juízo sumário, em que os acusados não tiveram direito à defesa.
As ideias – perfeitas como doutrina jurídica – não servem para invalidar o julgamento: “O processo penal é instrumento garantidor para evitar reações instintivas, injustas, arbitrárias ou irracionais, (...) é pautado por regras que neutralizem as paixões exacerbadas das multidões”. “As decisões do Poder Judiciário não podem deixar-se contaminar por juízos paralelos que objetivem condicionar os juízes.”
Bastará frisar que o processo penal deve salvaguardar direitos dos réus? Onde fica a sociedade enganada e ofendida pelos réus nos contubérnios que envolveram cinco partidos, cerca de R$ 200 milhões e três bancos?
Quem não soubesse dos crimes poderia pensar, até, que o processo só é justo se livra os réus. Sim, pois só se tratou da proteção aos acusados, como se não houvesse crime e os acusadores é que fossem suspeitos. Por que raciocinar assim num regime de plena liberdade e num juízo público que já dura seis anos?
A Justiça é a representação da sociedade. Mas, no voto erudito do ministro, a sociedade só apareceu como “paixão exacerbada das multidões”. Ou como “clamor popular” ou “pressões externas” do qual o STF deve defender-se.
Será pressão o clamor popular? Ou, como demonstração de inconformidade, é a soma de milhões de opi- niões? Clamor é algo que vem do fundo de cada um, como grito de dor.
E um grito de dor será pressão? O clamor exterioriza uma dor coletiva. Pressão é o que aperta sem que se veja, vindo de quem possa apertar – o poder político, as armas ou o dinheiro. Nada do que ocorreu aqui!
Minucioso, o decano do Supremo pesquisou a fundo no histórico dos recursos judiciais. Garimpou um voto no STF do então ministro Paulo Brossard (“o deslinde nem sempre se faz em linha reta”) e, além de outros juristas, citou até o ministro da Justiça da ditadura Médici, Alfredo Buzaid, processualista e juiz do Supremo.
Esqueceu-se, porém, que Buzaid passou à História não só pela prepotência política, mas por acobertar, quando ministro da Justiça, um crime abjeto cometido por seu filho: o estupro e assassinato da menina Ana Lídia Braga, de sete anos, em setembro de 1973 em Brasília, na chácara de um senador governista. A boneca da menina, num matagal, deu a pista da cova rasa em que encontraram o corpo, junto a dois preservativos – do filho do ministro e do filho do senador.
Naquela época, o clamor popular era “crime” punido pela ditadura. E o verdadeiro duplo crime permaneceu impune. Hoje, tempos de liberdade, o clamor é a dor de todos, por tudo. Também por Ana Lídia, seus sete anos e sua boneca.
*JORNALISTA E ESCRITOR
COMENTÁRIO DO BENGOCHEA - Parabenizo o jornalista Flávio Tavares pelo brilhantismo do texto e comparação da impunidade. Realmente, quando o ministro Mello aceitou numa retórica perfeita e comparada a uma aula de direito os tais “embargos infringentes”, ele se comportou como um defensor dos réus e protetor do direito paprticular, esquecendo a função precípua do poder judiciário que é a aplicação coativa das leis e de observar a supremacia do interesse público que exige um basta á impunidade da corrupção, um "mal que exaure a dignidade e a cidadania dos povos, drena a riqueza das nações e desvia recursos que proporcionariam o bem estar e o progresso de todos para o bolso e privilégio de alguns poucos (Ballouk e Kuntz, Madras 2008)."
É válido que “o processo penal é instrumento garantidor para evitar reações instintivas, injustas, arbitrárias ou irracionais" que não podem ser neutralizadas por "paixões exacerbadas das multidões” ou contaminada por "juízos paralelos que objetivem condicionar os juízes”, mas este "instrumento garantidor" não pode deixar de lado a espada da severidade e contribuir para com a impunidade de qualquer criminoso, até mesmo esta envolvendo o poder político, cinco partidos, cerca de R$ 200 milhões e três bancos.
A Justiça é sim a representação da sociedade na defesa e aplicação das leis, na moralização de condutas e na punição das ilicitudes garantindo recursos até a corte suprema, onde há o transitado em julgado. Infelizmente, tudo isto ocorreu pelo fato da justiça criminal brasileira estar falida e em declínio funcional, de produtividade, de severidade e de confiança. A centralização do transitado em julgado nas cortes supremas, o enfraquecimento dos tribunais regionais, a insuficiência de juízes e servidores, a burocracia exagerada, os amplos prazos, os variados recursos, o corporativismo, o personalismo das decisões judiciais, a morosidade dos processos, a permissividade contra as ilicitudes, a conivência com as leis fracas, obscuras e cheias de brechas e o apadrinhamento do descaso e da negligência dos poderes políticos na execução penal, mostram um Poder dependente, fraco, interessado apenas no umbigo e desfocado da supremacia do interesse público. O clamor popular e as pressões externas que se lixem, pois o judiciário não pertence ao povo, apesar de ser custeado por ele.
Caso Ana Lídia
Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.
O caso Ana Lídia refere-se ao assassinato de Ana Lídia Braga, um crime acontecido no Brasil na década de 1970, em plena ditadura militar. A família de Ana Lídia morava na SQN 405, Bloco O, da Asa Norte em Brasília, no Distrito Federal. Ela tinha sete anos de idade quando a sequestraram do Colégio Madre Carmen Sallés, escola onde foi deixada pelos pais às 13:30 horas do dia 11 de setembro de 1973. A menina foi, posteriormente, torturada, estuprada e morta por asfixia, morte que, segundo os peritos que analisaram seu corpo, teria acontecido na madrugada do dia seguinte. Seu corpo foi encontrado por policiais, em um terreno da UnB, às 13 horas do dia 12 de setembro. Estava semi-enterrado em uma vala, próxima da qual havia marcas de pneus de moto e duas camisinhas, provas que com facilidade poderiam levar os investigadores até os culpados da atrocidade. A menina estava nua, com marcas de cigarro e com os cabelos mal cortados.
Os suspeitos: filhos de políticos e até futuro presidente
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