ENTREVISTA - Cezar Peluso, o juiz (3ª PARTE) - A crise do Supremo, os holofotes e a catarse da mídia - POR Carlos Costa, jornalista, professor da Faculdade Cásper Líbero e editor da revista diálogos & debates. Revista Consultor Jurídico, 17 de abril de 2012
Em seus nove anos no Supremo Tribunal Federal, o ministro Antonio Cezar Peluso, que deixa a Presidência da Corte na próxima quinta-feira (19/9), enfrentou muitos momentos de tensão. Mas nenhum como o que o STF foi acusado de facilitar Habeas Corpus para o banqueiro Daniel Dantas. O então presidente da corte, Gilmar Mendes, ficou com todo o crédito pelo enfrentamento com o governo. Só agora Peluso revela a sua participação no episódio. Coube a ele mostrar ao presidente Lula e aos ministros palacianos que a situação policial fugira de controle — e que era preciso cortar cabeças. O então chefe do serviço de inteligência, Paulo Lacerda, foi demitido no mesmo dia.
Nesta terceira parte da entrevista dada à revista Consultor Jurídico, Peluso narra o episódio e faz um histórico da evolução das ferramentas que aperfeiçoaram o funcionamento do STF. Por ocasião do episódio em torno de Daniel Dantas, quando mais de cem juízes federais assinaram abaixo-assinado em defesa do colega Fausto De Sanctis, Peluso chegou a defender que todos os rebelados respondessem perante a Corregedoria pela insubordinação.
Na entrevista, ele analisa também a queda de braço entre a imprensa e o tribunal no caso do Mensalão, lamenta o advento do populismo judicial e os parcos resultados do estilo justiceiro de fazer Justiça. O ministro defende a exibição de crucifixos nas salas de julgamentos para lembrar a todos de um julgamento injusto e reafirma suas críticas à transmissão de julgamentos ao vivo pela TV Justiça.
Leia a terceira parte da entrevista:
ConJur — Como ministro do STF, houve algum momento de crise em especial?
Cezar Peluso — Sim, houve no caso do banqueiro Daniel Dantas, durante a desastrada Operação Satiagraha. Houve uma crise séria após a concessão do habeas corpus pelo presidente do STF, Gilmar Mendes, o que foi depois referendado pelo plenário. Foi um período tenso, com as escutas telefônicas clandestinas contra o Gilmar Mendes [denunciadas pela revista Veja, envolvendo o diretor da Polícia Federal, Delegado Paulo Fernando da Costa Lacerda]. Eu era o vice-presidente do Gilmar Mendes, e me dava bem com ele, em nome da instituição. Fui acompanhá-lo a uma reunião no Palácio do Planalto. Na mesa da reunião estavam o presidente Lula, o general Jorge Felix, do Gabinete de Segurança Institucional, o Gilberto Carvalho, chefe de Gabinete, discutindo a crise. O Nelson Jobim também estava ali. Fiz uma defesa enfática. “Presidente, o senhor vai me perdoar, mas está no momento virtuoso do seu governo e se o senhor não tomar agora uma atitude enérgica, igual à que o Geisel tomou, o senhor perde o controle da situação. Essa decisão tem de ser tomada agora para não permitir que a situação se deteriore, pondo em risco o STF. Isso irá desencadear uma crise política que, além de prejudicar o Supremo, afetará o seu projeto político. O senhor está em um momento em que só existe uma alternativa: tomar uma atitude igual à do Geisel [referência à crise em que Ernesto Geisel demitiu o ministro do Exército Sílvio Frota]. Passados três dias, o presidente Lula mandou o delegado Paulo Lacerda lá não sei pra onde.
ConJur — E os participantes concordaram?
Cezar Peluso — Falei para o general Jorge Felix: “Nós dois estamos interessados nas mesmas coisas, só que os métodos que o senhor preconiza não darão resultado. Agora é o momento de decisões radicais, e temos de tomar uma atitude firme em defesa do STF. Não é o ministro que está sendo julgado. É a instituição que está em risco”.
ConJur — Nesse período de nove anos em que o senhor participa do Supremo houve a introdução de uma série de instrumentos, como a das súmulas vinculantes, a repercussão geral. O que significou isso? Significou a atribuição ao STF de uma função ativa na vida política do Brasil. Foi a implantação desses institutos de modo definitivo que levou a sociedade, e particularmente o segmento político, a recorrer ao STF, valendo-se desses instrumentos para fixar certas questões em conflitos que antes eram resolvidos, ou não, na esfera política. Esses instrumentos deram à sociedade, e em particular à classe política, a oportunidade de recorrer ao Supremo e exigir que ele se posicionasse. Como resultado atribuiu-se ao Supremo um ativismo que seria incompatível com sua função, pois ele tem uma posição passiva. O STF, como o Judiciário em geral, não toma atitudes ou iniciativas. Ele é provocado, recebe a demanda e, quando entende que cabe dar resposta, o faz e ponto final. Os problemas trazidos, resultando na chamada “judicialização da política”, são de certo modo reflexo da incapacidade do próprio mundo político em resolver as crises em seu próprio âmbito. Mas é também consequência dessas vias disponíveis que permitem chegar ao Supremo e pedir sua posição. Isso deu ao STF uma dimensão política e social até então jamais conhecida em sua história.
ConJur — O senhor concorda que a Constituição de 1988 só começou a vigorar a partir de 2000?
Cezar Peluso — Não sei se começou a funcionar, mas a partir do ano de 2000, com a intervenção do STF, ficou mais clara a possibilidade de fazer valer a Constituição. Na Constituição anterior a sociedade não tinha meios de chegar ao Judiciário. Se houvesse uma representação de inconstitucionalidade, o presidente da República era quem podia ou não encaminhar para o Supremo. Agora qualquer cidadão que está legitimado e pode questionar. E os políticos também. Quando tivemos de nos pronunciar sobre a questão da fidelidade partidária, creio que meu voto foi importante. Pode não terem gostado da solução, mas o voto é vinculado ao partido. Acabamos com aquela espécie de mercado político que acontecia após as eleições: o governo tomava posse e oferecia vantagens para quem teoricamente seria da oposição, mas que se bandeava para o governo em troca das benesses, saindo para isso do partido.
ConJur — E no caso da Lei da ficha Limpa?
Cezar Peluso — O meu voto foi claro. Acho que é legitimo que a sociedade exija candidatos com bons antecedentes e que tente restringir as possibilidades de corrupção e desvio de funções. Isto é legitimo. Concordei com tudo isso, mas o que não posso concordar é em aplicar uma lei para fatos já praticados. Disse isso no meu voto e repito: nem durante a ditadura militar houve tal medida. Não conheço nenhum lugar no mundo, [enfático] nem na Rússia comunista se fez isso: criar uma lei para qualificar um ato já praticado. Não concordo. Já ouvi opiniões de advogados e o que eles me disseram foi o seguinte “Não se impressione com uma decisão tão estranha e tão esdrúxula, pois nunca mais tomarão outra igual”.
ConJur — Qual seria a vocação do Supremo? Julgar tudo ou apenas se pronunciar sobre os grandes temas constitucionais que afetam a todos os cidadãos?
Cezar Peluso — A vocação do Supremo são os grandes temas. Não é isso o que acontece agora, mas com o andamento da reforma teremos probabilidade de que o Supremo venha a se dedicar ao que deve. Ele só julgará aquilo que tiver repercussão, relevância social, institucional, política ou econômica para o país. Senão, não julga. O STF fará o que faz a Suprema Corte americana. No ano retrasado, ela julgou apenas 99 casos. Em 2005, rejeitou revisar o polêmico processo de Terri Schiavo, a doente que vivia em estado vegetativo havia 15 anos, por considerar que não era um caso relevante para ser julgado. O Supremo americano faz isso: escolhe as causas que julga a partir da relevância que pode ter para o país. E isso é o que devemos começar a fazer por aqui. Mas nesses nove anos o que tivemos foi a batalha para tentar zerar o acervo de processos que se acumularam por tantos anos. Esse cenário mudou com a introdução de dois mecanismos da mais alta importância na recuperação da missão do Supremo. O primeiro foi a súmula vinculante; o segundo, a repercussão geral. No instante em que começar a se avolumar o acervo das súmulas vinculantes diminuirá o número de pendências. Esse é o primeiro instrumento. O segundo, a “repercussão geral”, define que nenhuma causa será julgada pelo Supremo se não for capaz de produzir uma repercussão geral. Ou seja, para o Supremo julgar uma causa ela precisa ser importante em termos sociais, políticos e econômicos para o país, tem que transcender os interesses individuais daquele processo. Porque se o vizinho sem querer matou a vaca do outro fazendeiro, isso é uma questão de responsabilidade mas que não repercute na vida nacional, então não há motivo para ficar discutindo vinte anos até chegar ao STF.
ConJur — Num mundo de mudanças rápidas, com novas áreas como biotecnologia, biogenética, a súmula vinculante não poderia engessar a Justiça?
Cezar Peluso — Não, porque o sistema de súmulas vinculantes e de repercussão geral é aberto e o próprio regimento do STF regulamenta a revisibilidade. Todas as posições são passíveis de revisão, caso mudem as condições históricas, econômicas e sociais. Quando surgirem circunstâncias capazes de influir numa mudança de posição do Supremo, as súmulas serão revistas.
ConJur — A súmula vinculante não tiraria do juiz a prerrogativa de julgar de acordo com sua consciência?
Cezar Peluso — Mas isso seria outra manifestação de excesso de suscetibilidade. A súmula não é algo “oracular”, como se Deus desse ao Supremo o poder de ditar uma sentença. O STF não fixará sentenças a partir do nada. Como nasce uma súmula? Um juiz decide desse jeito, sua sentença vai para o Tribunal, que decide do mesmo jeito. A causa sobe para o Superior Tribunal de Justiça, que decide do mesmo modo. Vai então para o Supremo, que a confirma. São milhões de pequenas decisões, trabalho de reflexão de milhares de juízes que decidem com uma visão comum. E então o STF diz: “Diante de tanto consenso, é hora de fixar uma posição”. E está criada a súmula. De onde veio a súmula? Do pensamento dos juízes! Quem fixa a súmula são os juízes, será que não percebem? Da mesma forma, as revisões das súmulas nascerão de contribuição dos próprios juízes. Não é possível continuar tendo decisões contraditórias, um juiz decide assim, outro decide daquele jeito, e a sociedade perde a segurança.
ConJur — Há muitas súmulas vinculantes?
Cezar Peluso — Quase trinta. Devemos aprovar mais algumas, iremos converter de súmulas ordinárias em súmulas vinculantes. Precisamos de mais súmulas vinculantes, estamos um pouco atrasados nessa produção.
ConJur — Como funciona esse processo?
Cezar Peluso — O ministro ou qualquer pessoa pode propor, depois de uma série de decisões uniformes no mesmo sentido. Faz-se um pequeno processo. As pessoas podem opinar, sai um edital, depois é ouvida a comissão de jurisprudência, e as procuradorias gerais e o plenário decide. Temos muitos assuntos que mereciam já ter se transformado em súmulas. Um dele é a questão da guerra fiscal. Temos mais de 20 decisões dizendo que não se pode conceder nenhum favor fiscal sem autorização do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz). E os estados continuam concedendo, pois é preciso uma sumula vinculante para colocar um fim a essa guerra dos incentivos fiscais.
ConJur — Que organização da sociedade tem participado desse movimento?
Cezar Peluso — Não tivemos nenhuma proposta formal de súmulas vinculantes por parte de entidades ou organizações. Existem sugestões informais de advogados, mas formalmente nada.
ConJur — Nem por parte da OAB?
Cezar Peluso — Não. Qualquer classe ou pessoa que ache que uma matéria já foi decidida tantas vezes pelo Supremo e que seria importante estabilizar aquela decisão pode pedir, não há restrição alguma. Estamos um pouco inibidos, há vários assuntos que estão bem sedimentados e que poderiam ser objeto de súmulas vinculantes. Na minha gestão fizemos um levantamento de todas as súmulas produzidas pelo Supremo. Produzimos mais de 700 súmulas, e nesse levantamento das súmulas antigas vimos quais tratam de assuntos atuais e que poderiam se tornar vinculantes. Fiz uma proposta para o plenário: há umas duas dezenas de súmulas que quero aprovar antes da minha saída. Mas isso ainda é pouco.
ConJur — O senhor tuíta?
Cezar Peluso — [enfático] Não sei lidar com isso. Não sei como funciona. Não tenho o mínimo interesse em participar do twitter.
ConJur — O ministro Gilmar Mendes usava o twitter para adiantar o dia em que daria, por exemplo, resposta àquele caso do menino Sean Goldman, que a mãe trouxera dos Estados Unidos sem o consenso do pai. Houve excesso de exposição naquele episódio pelo então presidente do STF?
Cezar Peluso — Isso depende das características da personalidade de cada presidente do Tribunal. Cada um tem o seu modo de entender o relacionamento com a opinião pública e de atuar. O Gilmar tem uma visão diferente da minha, pois sou mais retraído. Mas os meus canais de comunicação funcionam muito bem e não preciso aceder ao twitter.
ConJur — O historiador Marco Villa afirmou que agora a Eliane Calmon precisa trabalhar e mostrar provas. Ela tem algum projeto político?
Cezar Peluso — Há até uma suspeita. Na revista Piauí ela declarou que não tem. Mas até agora ela não apresentou resultado concreto algum, fez várias denuncias. Ela está se perdendo no contato com a mídia e deixando de lado o foco, a procura de resultados concretos. No mês de setembro ela sai, retorna para o tribunal dela, que é o STJ. Termina o mandato e volta. São apenas três meses. Que legado deixou?
ConJur — O que o senhor achou de o presidente do TJ-SP propor a confrontação de holerite?
Cezar Peluso — Foi um pouco de ingenuidade fazer essa proposta. Ele se acha na obrigação de não ficar quieto quando a ministra Eliana Calmon faz alguma declaração para a imprensa. Ela pode ser bem intencionada, mas até agora não existe resultado concreto algum, nem a apuração dos supostos bandidos de toga disse que disse existir até agora não deu em nada. Existe o caso que está no STF sobre o Tribunal do Tocantins, mas isso começou na gestão do corregedor passado, quem preparou tudo aquilo foi o ministro Gilson Dipp, ela não colocou a mão em nada. Isso esta no STJ há anos. É uma situação velha. Ela está tirando proveito disso como se tivesse alguma ligação com sua gestão. Tudo aquilo já havia sido feito. Em termos de trabalho dela, parece que está desenvolvendo uma serie de procedimentos nos tribunais, mas até agora não apareceu nada. Ela se deixou envolver por essa coisa efêmera que é a aparição na mídia. Ela explora isso.
ConJur — Mas essa atração é forte, como aconteceu com o ministro Sidney Sanches, que era presidente do STF e comandou o ritual do impeachment de Collor.
Cezar Peluso — Isso acontece. Basta lembrar-se de quando o ministro Joaquim Barbosa acatou o recebimento da denúncia contra os envolvidos no episódio do mensalão? Foi aplaudido em um bar do Rio de Janeiro, foi lançada a candidatura dele, e ele até gostou da ideia. Quando você se vê dentro da mídia, sendo o foco, tudo centralizado em você, tudo pode passar pela cabeça. É natural. Perguntei ao presidente Sarney, ele é meu amigo, se achava que a ministra Calmon tinha intenções políticas. Ele disse: “Se até pela cabeça do ministro Joaquim Barbosa passou isso, pode passar pela cabeça dela”[risos]. Mas ela disse que não. Mas ela se sente bem nessa postura.
ConJur — A ministra fala com grande entusiasmo quando diz que só pode entrar no Tribunal de Justiça de São Paulo no dia em que o sargento Garcia prender o Zorro.
Cezar Peluso — E a imprensa repercute, pois dá retorno. Diz que a estrutura do Judiciário é arcaica. Mas não ocorre nada disso. Nada e nem ninguém podia ou pode impedi-la jamais que de fazer qualquer inspeção no Tribunal de São Paulo. Quem poderia impedi-la de vir a São Paulo? Na competência dela, como corregedora, pode fazer inspeção em qualquer lugar.
ConJur — Mas a decisão recente do Supremo reforçou o papel da Corregedoria do CNJ.
Cezar Peluso — Mas foi algo apertado, 6 votos a 5. Foi algo extremamente discutido. Não foi algo tranquilo, não, não foi um 11 a 0. Quem decidiu esse resultado foi a nova ministra, Rosa Maria Weber, estava 5 a 5. Então não foi algo tão tranquilo assim.
ConJur — O senhor estava entre os 5 contra.
Cezar Peluso — Eles acabaram reconhecendo que o CNJ pode até provocar leis. Como pode uma coisa dessas? Particularmente não concordei e nem concordo. Não se pode reconhecer poderes absolutos para o governo ou para instituição alguma. Tem de ser feito tudo dentro da legalidade.
ConJur — E o caso do Tribunal do Mato Grosso?
Cezar Peluso — Também é coisa antiga. E não ficou em panos quentes, não. O ministro Celso de Mello acatou uma liminar que paralisou o processo. Isso também não foi obra da atual corregedora. Ela nem pôs a mão, quem começou isso foi o Gilson Dipp. E ai discutindo o negócio da competência do Conselho, o Celso de Mello suspendeu a decisão, provavelmente agora retome o curso normal do processo. Eu não conheço o processo, consta que os desembargadores de lá teriam recebido dinheiro e encaminhado para a maçonaria. Eram diferenças de salários atrasados a que eles teriam direito e decidiram receber de uma vez, mas foi encaminhado para a maçonaria. Não foi fraude no sentido de falsificar alguma coisa. Eles receberam mesmo e passaram o dinheiro para a maçonaria. Temos aproximadamente 20.000 juízes no país, e nesse universo ou num universo de 20.000 profissionais de qualquer categoria, claro que iremos encontrar gente não correta.
ConJur — No caso do Mato Grosso houve a prática do nepotismo cruzado, o presidente da Assembleia contratava o filho do presidente do Tribunal.
Cezar Peluso — Mas isso já acabou, quando baixamos a súmula vinculante acabaram esses casos todos. E isso terminou. Mas precisávamos de mais súmulas vinculantes.
[A súmula vinculante nº 13 diz “A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada na administração pública direta e indireta em qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal”.]
ConJur — O jurista português Joaquim José Gomes Canotilho diz que se escandalizou na primeira vez em que assistiu no Brasil a TV Justiça. Depois, reconsiderou, concedendo que talvez seja mais transparente televisionar as audiências do Supremo. O que o senhor pensa?
Cezar Peluso — Tenho uma restrição pessoal quanto ao excesso de exposição dos julgamentos. É uma posição conhecida e que já manifestei diversas vezes. Continuo a insistir nela, embora seja uma restrição absolutamente inútil, pois o fato é irreversível. Não há a mínima possibilidade de alteração desse quadro. A sociedade receberia isso como um retrocesso e uma tentativa do Supremo em esconder as razões de suas decisões. E a sociedade não toleraria isso. Particularmente acredito que essa não é a melhor forma de deliberar. A experiência no resto do mundo mostra ser mais proveitoso quando se discutem previamente e reservadamente as decisões. Nessa situação os magistrados têm a oportunidade de debater as questões em outro clima. Estar exposto à câmera de uma TV altera o modo de ser e comportar de qualquer pessoa, não apenas a do juiz. O que é absolutamente humano e natural. E isso nem sempre é bom para a imagem da Corte.
ConJur — Não há a tentação, por parte dos ministros, em entrar no clima do show? Com pareceres longos e pernósticos?
Cezar Peluso — Diante da presença das câmeras de TV eles se veem na obrigação de expor seus pontos de vista de maneira mais dilatada do que fariam se a decisão fosse tomada privadamente. Isso é uma consequência prática do sistema e que eventualmente pode conduzir a alguns excessos. São as consequências da interação entre a pessoa e a câmera de TV.
ConJur — Os juízes e sobretudo os ministros do STF não continuam escrevendo sentenças para a “posteridade”, em vez de serem diretos e se dirigirem ao cidadão que fez a demanda?
Cezar Peluso — Nesse sentido o Supremo é menos pródigo que os tribunais, que costumam produzir longas citações de doutrina ou jurisprudência. O que os ministros fazem, quando os votos são menos abreviados do que deveriam, é expor razões pessoais considerando que certos temas que aparecem pela primeira vez devem ter um tratamento mais profundo. Por isso produzem votos mais longos. Mas acho que na verdade a prática judiciária ganharia se conseguíssemos ser mais breves em algumas intervenções.
ConJur — Há uma tendência hoje, não só no Supremo, mas também no STJ, de estar mais alinhado com a opinião pública?
Cezar Peluso — Há uma tendência. Não sei o que vai acontecer, mas é preocupante. Há uma tendência da Corte em se alinhar com opinião. Dependendo dos novos componentes.
ConJur — É difícil saber qual a decisão certa e saber que ela ira desagradar o vizinho? É difícil para o juiz tomar decisão conforme a convicção?
Cezar Peluso — Nunca tive dificuldade nisso. Mas em certas circunstâncias a gente percebe que a opinião pública exerce uma pressão ou influência muito forte.
ConJur — No caso do julgamento do mensalão, o senhor acha que a imprensa está promovendo uma queda de braço com o Supremo para forçar uma decisão?
Cezar Peluso — Uma coisa aqui ou outra ali pode ser, mas não vejo como uma orientação de caráter geral na imprensa. Até porque certas atitudes sempre existiram, se os meios de comunicação acham, por exemplo, que certo ministro irá votar a favor dos envolvidos, eles o agridem. Não sei se seria possível dizer que estão querendo criar um ambiente favorável à condenação. Não sei quem irá ganhar, pois ninguém comenta. Nenhum ministro comenta nada sobre o mensalão, é como se fosse um tabu, receio de que algo acabe vazando para os meios de comunicação. A convivência com os juízes dentro do tribunal é algo rarefeito, faz se um comentário aqui, uma crítica ali. Mas no caso do mensalão não se fala absolutamente nada, parece que todo mundo tem medo do mensalão. A impressão que dá é que os ministros estão preocupadíssimos, pois se vazar alguma coisa a imprensa cairá de pau. Então entre nós não se conversa.
ConJur — O que o senhor achou daquela reportagem da revista Piauí, que ocupou duas edições?
Cezar Peluso — A revista perdeu uma belíssima oportunidade de produzir algo que ainda não foi feito, que é um estudo profundamente sério e objetivo do funcionamento e da importância do Supremo Tribunal Federal. A reportagem foi atraída por um viés muito pessoal sobre a maneira de ser dos ministros, contando detalhes que não acrescentam nada. Acho que o enfoque deveria ser conhecer a Corte como tal, em que sentido os ministros decidem em questões específicas.
ConJur — E a questão do crucifixo?
Cezar Peluso — Leu o artigo do Paulo Brossard? Notável, ele põe as coisas no lugar. O crucifixo não é nenhum problema de ordem religiosa, é cultural, ele não está ali representando a religião, e sim representando um julgamento injusto. Há um livro famoso de um ex-membro da corte constitucional da Itália, Gustavo Zagrebelsky [Il «crucifige!» e la democrazia] em que ele discute as afirmações do jurista e filósofo austro-americano Hans Kelsen. Kelsen dizia que o julgamento de Cristo foi o julgamento mais democrático da história, pois Pilatos agiu com um republicano. Quando ficou em dúvida, ele deixou a decisão na mão do povo. E o que Zagrebelsky mostra no livro é que essa decisão foi mais a antidemocrática que possível, pois foi uma decisão em que o povo foi usado como instrumento de uma ideologia para oprimir um homem inocente.
ConJur — O julgamento ficou nas mãos dos sacerdotes.
Cezar Peluso — E eles perguntaram para o povo o que eles queriam: Barrabás ou Jesus? Deu no que deu, omissão e manipulação.
ConJur — O senhor teve uma carreira notável, uma obra completa. Mas chega ao final e se vê envolvido nessa situação pirotécnica e, na visão remota da população, que não sabe nada do que de fato acontece, enxergam um escândalo. Como é que o senhor se sente?
Cezar Peluso — Resumiria isso numa expressão: é mais fácil atirar pedra nos outros do que usar as pedras para construir alguma coisa. Rende mais é mais bonito. Mais que os 15 minutos de glória, a opinião pública também é uma volúvel, transitória e passa e não fica nada. O importante para a instituição é o que se faz e que reforce a instituição como tal.
ConJur — Personalidades como o juiz Fausto De Sanctis, o procurador Luiz Francisco de Souza, a ministra Eliana Calmon ou o ministro Joaquim Barbosa têm certa semelhança. Alcançam grande visibilidade porque existe uma demanda por parte da população por esse tipo de atuação. A tendência é que surjam mais e mais personagens com esse estilo?
Cezar Peluso — Não tenho elementos para pensar no longo prazo, mas fico com a sensação ou expectativa de que não continuará assim. Não sou capaz de profetizar nada, a gente tem esperança de que a sociedade incorpore certos valores que estão sendo considerados ultrapassados. É uma sociedade imediatista, de consumo de massa e que tem valores de satisfação imediata. As coisas do espírito estão sendo deixadas de lado, a preocupação ética não é uma verdade histórica. Entre as pessoas que vão para a rua fazer campanha contra a corrupção há muita gente com uma vida profissional absolutamente antiética, como se só a corrupção dos poderes públicos fosse o único mal do país. E na verdade a corrupção dos poderes públicos é nada mais do que um epifenômeno da corrupção que está arraigada na mentalidade e na cultura de nossa sociedade. Como eu já disse quando li aquela pesquisa, o que se pode esperar de uma juventude capaz de afirmar: “Para ser bem sucedido economicamente na vida sou capaz de fazer qualquer coisa”? Desse tipo de sociedade pode sair, em termo de poder público, o quê? Exatamente o que estamos assistindo agora.
ConJur — Mas esse fenômeno não é apenas brasileiro.
Cezar Peluso — Há uma diferença substancial, não podemos comparar a situação do Brasil com a situação dos países escandinavos, por exemplo. O último grande escândalo na Finlândia, para citar um caso. O primeiro ministro fez o que? Fez um nada, parece que havia recebido a contribuição de uma companhia para a campanha eleitoral. Isso foi o escândalo do país! Se fosse entre nós ou nos Estados Unidos, não teria havido repercussão nenhuma. Existe uma educação do povo a esse respeito do respeito pela coisa pública na Finlândia, que nós não temos.
ConJur — O fato de termos uma nova classe média em ascensão, buscando estudar na universidade, no longo prazo não trará um resultado diferente? Cezar Peluso — Mas essa classe está ascendendo ao consumo, à posse de bens, a questão de valores passa por outro crivo. Quanto ao ingresso no ensino superior, há uma diferença muito grande entre preparar intelectualmente o povo e educar o povo. Pode existir uma elite com há na China hoje, educada intelectualmente e que funciona, mas quais são os seus valores fundamentais, além da economia, do desenvolvimento material da sociedade? Há essa diferença. Se as duas coisas andassem juntas as nossas esperanças seriam mais fundadas. Vivemos hoje uma mentalidade em que o que mais atrai são as possibilidades do consumismo. As pessoas querem ganhar dinheiro para ter e usufruir dessas coisas e com isso fica feliz. Está bom. Para que ser ético?
ConJur — Existe hoje um clima a favor de linchamento e não importa a quem. A imprensa se vê refém de um gosto mais vulgar. Isso estimulou a polícia que, usando o Ministério Público, passou a acusar sem muita preocupação. Ou o MP está hoje menos ofensivo?
Cezar Peluso — Não. Acho que está mais ofensivo. Mas acho interessante observar o que aconteceu na Itália com a operação “mani puliti”, as mãos limpas. Quais foram os resultados práticos? Não houve nenhuma condenação. É importante distinguir o que é objeto de exacerbação midiática, que a imprensa explora pela necessidade de notícias de impacto, como a prisão de um banqueiro, algemado diante das câmaras. Isso satisfaz uma série de frustrações que o povo carrega consigo. Outra coisa é o trabalho tecnicamente consistente para levar a resultados práticos satisfatórios para a sociedade, mas que não produz o efeito de satisfazer o clamor. São duas coisas diferentes. Existem grandes ações que despertam a indignação de um lado da população, do outro lado dão a sensação de que as instituições estão funcionando. Isso é uma coisa. Outra é examinar do ponto de vista do funcionamento do sistema o que foi apurado de modo fundamentado e que possa levar a resultados práticos na apuração de responsabilidade. São coisas diferentes. O povo tem muitas frustrações. Existe uma vertente psicológica que não é levada em consideração, mas é importante. Todos temos nossos complexos de Édipo que não foram resolvidos tão bem assim. Marcas infantis de autoritarismo, que inconscientemente não aceitamos. E identificamos e projetamos nas autoridades essas figuras paternas e dirigimos nossas pulsões inconscientes contra as autoridades. Não tenho dúvida de que certas pessoas que têm ódio à magistratura são as que tiveram graves problemas com a figura paterna. Eles transferem para a figura do juiz toda a carga inconsciente de repulsa que têm pela figura paterna. Nós juízes reencarnamos o pai. Por isso que o juiz é o objeto permanente dessa animosidade.
ConJur — E a realidade dá uma mão para isso, não é?
Cezar Peluso — Sim, pois a questão dos precatórios está aí há não sei quantos anos, politicamente temos instâncias que não correspondem aos interesses públicos, e o povo percebe isso. Então a mídia satisfaz essas necessidades do público. É uma catarse. O que os jornais publicam contra o juiz tem um efeito catártico para quem teve problema com o pai ou está revoltado com a sociedade. De certo modo ele assume, é como se ele mesmo estivesse dizendo aquilo para o juiz, para o político, para o prefeito, e no fundo ele tem vontade de fazer isso. E a mídia assume esse clamor e o satisfaz. Quanto ao Ministério Público, muitas vezes ele também joga isso para a plateia.
O dia em que a Justiça Brasileira se tornar sistêmica, independente, ágil e coativa, e com Tribunais fortes e juízes próximos do cidadão e dos delitos, o Brasil terá justiça, segurança e paz social.
"A Função Precípua da Justiça é a aplicação coativa da Lei aos litigantes" (Hely Lopes Meirelles)- "A Autoridade da Justiça é moral e sustenta-se pela moralidade de suas decisões" (Rui Barbosa)
MAZELAS DA JUSTIÇA
Neste blog você vai conhecer as mazelas que impedem a JUSTIÇA BRASILEIRA de desembainhar a espada da severidade da justiça para cumprir sua função precípua da aplicação coativa das leis para que as leis, o direito, a justiça, as instituições e a autoridade sejam respeitadas. Sem justiça, as leis não são aplicadas e deixam de existir na prática. Sem justiça, qualquer nação democrática capitula diante de ditadores, corruptos, traficantes, mafiosos, rebeldes, justiceiros, imorais e oportunistas. Está na hora da Justiça exercer seus deveres para com o povo, praticar suas virtudes e fazer respeitar as leis e o direito neste país. Só uma justiça forte, coativa, proba, célere, séria, confiável, envolvida como Poder de Estado constituído, integrada ao Sistema de Justiça Criminal e comprometida com o Estado Democrático de Direito, será capaz de defender e garantir a vida humana, os direitos, os bens públicos, a moralidade, a igualdade, os princípios, os valores, a ordem pública e o direito de todos à segurança pública.
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