MAZELAS DA JUSTIÇA

Neste blog você vai conhecer as mazelas que impedem a JUSTIÇA BRASILEIRA de desembainhar a espada da severidade da justiça para cumprir sua função precípua da aplicação coativa das leis para que as leis, o direito, a justiça, as instituições e a autoridade sejam respeitadas. Sem justiça, as leis não são aplicadas e deixam de existir na prática. Sem justiça, qualquer nação democrática capitula diante de ditadores, corruptos, traficantes, mafiosos, rebeldes, justiceiros, imorais e oportunistas. Está na hora da Justiça exercer seus deveres para com o povo, praticar suas virtudes e fazer respeitar as leis e o direito neste país. Só uma justiça forte, coativa, proba, célere, séria, confiável, envolvida como Poder de Estado constituído, integrada ao Sistema de Justiça Criminal e comprometida com o Estado Democrático de Direito, será capaz de defender e garantir a vida humana, os direitos, os bens públicos, a moralidade, a igualdade, os princípios, os valores, a ordem pública e o direito de todos à segurança pública.

domingo, 6 de março de 2011

ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA - CADA JUIZ INVENTA O SEU MODELO

O CONCEITO DE ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA É UM FANTASMA - LUIZ FLÁVIO GOMES - Consultor Jurídico, 03/03/2011

“A não violência não é uma vestimenta que colocamos e retiramos à vontade. Seu eixo se encontra no coração, e deve ser uma parte inseparável do nosso ser.” (Gandhi).


Existe crime organizado no Brasil? Se imaginarmos o crime organizado como uma atividade empresarial que explora algum tipo de mercado ilícito, a resposta só pode ser positiva: existe. Ou seja, no plano fático (fenomenológico) ele existe. Se olharmos diariamente a mídia, diremos: existe. Vejamos:

“O crime organizado só existe com a participação da Polícia”, disse Cláudio Beato, Folha de S. Paulo de 20.02.11, p. C9. “É impossível ganhar a batalha contra o crime organizado, sem extirpar a corrupção policial” (Veja de 23.02.11, p. 63). “Edir Macedo é acusado de lavagem de dinheiro e organização criminosa” (Veja de 23.02.11, p. 48). “A Operação Guilhotina foi deflagrada para prender policiais ligados ao crime organizado” (O Globo de 18.02.11, p. 14).

No plano jurídico, no entanto, ele não existe. Juridicamente sempre ficamos indagando: como é esse lúcifer (esse fenômeno diabólico)? Nenhuma lei no Brasil, nunca, definiu o que se entende por crime organizado. Várias leis fazem referência ao crime organizado ou às organizações criminosas (lei do crime organizado, lei de lavagem de capitais, lei das drogas etc.), mas nenhuma trouxe qualquer tipo de definição.

Conclusão: um dos maiores exemplos de autoritarismo penal, portanto, consiste em o juiz valer-se desse “fantasma jurídico” (crime organizado ou organização criminosa) para tolher qualquer tipo de direito ou garantia fundamental dos suspeitos, indiciados, acusados ou condenados. Juridicamente os juízes estão proibidos de determinar qualquer tipo de consequência penal ou processual com base nesse “fantasma jurídico”.

Na praxis forense a violação dessa proibição tornou-se uma constante. Isso comprova o quanto o autoritarismo penal vem penetrando na nossa ordem jurídica.

Diante da inexistência de parâmetros legais, cada juiz pinta o diabo (jurídico) como lhe agrada. A 6ª Turma do STJ, no HC 189.979 (de relatoria do ministro Og Fernandes), acaba de rabiscar mais uma noção da (juridicamente) fantasmagórica organização criminosa (mais detalhes logo abaixo). Serviria essa “pintura”, dada pela 6ª Turma do STJ, de padrão para o legislador?

O conceito de crime organizado (ou de organização criminosa) talvez seja hoje no Brasil o melhor exemplo de quanto o Direito, muitas vezes, é virado de ponta-cabeça. Antigamente aprendíamos que o legislador define a figura criminosa e o juiz a aplica. Como o legislador nada definiu (sobre as organizações criminosas), cada juiz vai inventando seu fantasmagórico arquétipo (modelo, protótipo).

Processo invertido. Juízes legislando. Os juízes é que estão criando o conteúdo demoníaco do crime organizado. Cada um inventa seu conceito. E o princípio da legalidade, que expressa um mundo de garantias, desde o tempo do Iluminismo?

Isso vale para o Direito Penal liberal, para o Direito Penal do cidadão. Aqui no âmbito do Direito Penal do inimigo inverte-se tudo, viola-se tudo, rasga-se tudo (a Constituição, os Tratados internacionais). Os direitos e as garantias ficam suspensos. Porque é tempo dos autoritarismos. O povo, com medo, pede repressão, a mídia ecoa, o legislador faz menção ao satã (ou ao fantasma) e os juízes então (anomalamente) se encarregam de descrevê-lo.

A criminologia (desde os tempos da lei seca nos Estados Unidos, desde Merton, Cressey e tantos outros) bem que tentou revelar as características do fenômeno. Não conseguiu. Alguns legisladores (ao redor do planeta, sobretudo na Itália) também tentaram fazer alguma coisa. Mas nada conseguiram de sólido. Diante da impossibilidade de definir o diabo, os juízes vão dando os seus contornos conforme a imagem de cada um.

O problema é cada juiz tem seu modelo de diabo na cabeça. Logo, na medida em que eles assumem a função (inconstitucional, claro) de definir o crime organizado, acabamos por não avançar muito. Cada um entende o fenômeno da sua maneira. Dentro de pouco tempo vamos ter mais de 10 mil definições distintas. A verdade é que a segurança e o Estado de Direito se evaporariam (caso cada juiz pudesse desempenhar essa função).

O legislador penal brasileiro nunca se atreveu a descrever esse ente endemoninhado (que perturba as nossas cabeças). A primeira lei no Brasil que cuidou do crime organizado foi a 9.034/1995. A legislação penal brasileira vem fazendo referência ao crime organizado e às organizações criminosas, portanto, desde 1995. Mas até hoje, repita-se, nunca definiu o que se entende por isso.

Dentro do Direito Penal brasileiro, em consequência, o conceito de organização criminosa é (juridicamente falando) um verdadeiro “fantasma” (que ronda as cabeças do inconsciente popular, da mídia, do legislador, dos operadores jurídicos e dos autores de ficção).

Como o Direito Penal, pelos seus drásticos danos contra bens jurídicos muito relevantes, não pode admitir definições vagas (completamente vagas) (é nisso que reside a garantia da legalidade), não resta outra conclusão: só o autoritarismo (que acompanha o populismo penal) explica o uso massivo (pela jurisprudência) do “fantasma” do crime organizado (ou da organização criminosa).

Para o Direito Penal autoritário, como se sabe, quanto mais vagos os conceitos mais apropriados eles são para “permitir” a “ilegítima” invasão na vida e na liberdade das pessoas, violando seus direitos e garantias fundamentais.

Quem, com toda contundência e clarividência, denunciou a vacuidade (o vazio) do conceito de crime organizado foi Zaffaroni.[1] Os conceitos vagos, em Direito Penal, violam o princípio da legalidade: “O transporte de uma categoria frustrada ao campo da lei penal não é mais que uma criminalização que apela a uma ideia difusa, indefinida, carente de limites certos e, por fim, uma lesão ao princípio da legalidade — isto é, à primeira e fundamental característica do Direito Penal liberal ou de garantias”.

Ainda que desde a lógica científica (lógica do Direito Penal garantista) o fracasso da categorização (o fracasso da tentativa de conceituação do crime organizado) devesse determinar que a mesma não passasse de uma tentativa no campo criminológico, a lógica política (a lógica do autoritarismo) opera de outra maneira e, por fim, o crime organizado fez sua entrada na legislação penal (no Brasil, em 1995), com a previsível consequencia de introdução de elementos de Direito Penal autoritários.

Mas para que serviria fazer menção numa lei a um conceito vago e indeterminado? Zaffaroni responde[2]: “O conceito fracassado em criminologia foi levado à legislação para permitir medidas penais e processuais penais extraordinárias e incompatíveis com as garantias liberais.” Em outras palavras: os conceitos vagos (“fantasmagóricos”), justamente porque são hiperabrangentes, servem para o cometimento de todo tipo de arbitrariedade.

Vejamos uma delas:

Diz o parágrafo 4o, do artigo 34, da lei de drogas (Lei 11.343/2006) que “Nos delitos definidos no caput e no parágrafo 1o deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, vedada a conversão em penas restritivas de direitos, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa.”

Em síntese: se o sujeito faz parte de uma “organização criminosa” não pode se beneficiar da redução de pena contemplada no dispositivo legal. Mas o que se entende por organização criminosa? A lei brasileira nunca deixou isso claro. Já que o legislador não se encarregou do tema, os juízes (inconstitucional e inconvencionalmente) estão assumindo a tarefa. Usurpando funções do legislador.

A 6ª Turma do STJ, nesse caminho, no HC 189.979, fixou o entendimento de que aquele que figura como “mula de tráfico”, transportando grande quantidade de droga, mediante remuneração e com despesas pagas, integra organização criminosa.

Onde está escrito isso na lei? Em nenhum lugar. Então o juiz (no caso, o ministro) está legislando? Sim. E Montesquieu (aquele filósofo que falava em divisão de poderes) está se remoendo em sua tumba? Certamente. E o Estado de Direito? Atropela-se. E o Iluminismo? Mera filosofia. Está fora do contexto autoritário brasileiro.
O julgado foi relatado pelo ministro Og Fernandes que negou o pedido do writ. A defesa pretendia fazer incidir a causa de diminuição de pena prevista no artigo 33, parágrafo 4º, da Lei de Drogas ao argumento de que o réu era primário, de bons antecedentes e não integrava organização criminosa.

Ocorre que ele foi surpreendido tentando embarcar para a Holanda com 960 gramas de cocaína em 83 cápsulas ingeridas, fato que para o ministro não pode ser desconsiderado, em razão da quantidade da droga que traduz o elevado nível de culpabilidade do paciente: “É de ver, por fim, que a mens legis da causa de diminuição de pena seria alcançar aqueles pequenos traficantes, circunstância diversa da vivenciada nos autos, dada a apreensão de expressiva quantidade de entorpecente, com alto poder destrutivo” (STJ, HC 189.979).

O réu pretendia ter diminuída sua pena em 1/6 a 2/3, alegando que era primário, de bons antecedentes e que não se dedicava às atividades criminosas nem integrava organização criminosa — requisitos exigidos pelo parágrafo 4º, do artigo 33, da lei. A tese não foi aceita pelo STJ porque seu envolvimento com atividades criminosas estava configurado pelo fato de sua viagem à Amsterdã ter sido “patrocinada” pela organização, para a qual ele transportava a droga.

Como se vê, o STJ acaba de usarpar (mais uma vez) as funções do legislador. Isso é absolutamente inconstitucional e inconvencional. Fica fácil o leitor perceber que no âmbito do Direito Penal do inimigo (direito sem garantias) o fantasma do crime organizado (e das organizações criminosas) continua rendendo muitos frutos.
Até quando o princípio da legalidade, previsto na Constituição e nos Tratados internacionais, continuará reduzido a pó em alguns momentos? Para contornar a questão, alguns invocam o Tratado de Palermo. Isso é incorreto. Nenhum tratado internacional pode definir crimes para reger o direito aplicado dentro do Brasil.

Vamos aprofundar esse tema.

Observe-se, de outro lado, que o tema já está na pauta do STF (1ª Turma). No HC 96.007 já existem dois votos (ministros Marco Aurélio e Dias Toffoli) que negam a existência jurídica das organizações criminosas no Brasil. Vamos ver como vai acabar esse julgamento.

[1] Cf. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Crime organizado: uma categorização frustrada. Discursos Sediciosos: crime, Direito e sociedade, ano I, n. 1, Rio de Janeiro: Relume Dumará: Instituto Carioca de Criminologia, p. 45-68, 1996.
[2] Cf. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Crime organizado: uma categorização frustrada. Discursos Sediciosos: crime, Direito e sociedade, ano I, n. 1, Rio de Janeiro: Relume Dumará: Instituto Carioca de Criminologia, p. 45-68, 1996.
Lançamento: Anuário da Justiça Rio Grande do Sul


LUIZ FLÁVIO GOMES é doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri e mestre em Direito Penal pela USP. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), juiz de Direito (1983 a 1998) e advogado (1999 a 2001). É autor do Blog do Professor Luiz Flávio Gomes.

Nenhum comentário:

Postar um comentário