ENTREVISTA - CARLOS AYRES BRITTO, Ministro aposentado do STF
Por CAROLINA BAHIA E KLÉCIO SANTOS
Em tudo que faço já não faço questão de ser reconhecido. O que eu faço questão é de me reconhecer. Poemeto inédito do livro que Ayres Britto lançará, chamado DNAlma
Carlos Augusto Ayres Britto de Freitas, 70 anos, ainda está longe de se aposentar. Na primeira insinuação de que a vida estaria mais tranquila afastado dos conflitos do Supremo Tribunal Federal, responde com a voz serena, mas marcada pelo sotaque sergipano:
– Continuo no batidão de sempre.
Uma semana depois de deixar a presidência da mais alta Corte do país, o magistrado vem atendendo a numerosos compromissos para conferências e homenagens. Nada, porém, denota qualquer estresse no tom cordial de Ayres. Parece se divertir depois de três meses de grande tensão à frente do rumoroso julgamento do mensalão. O local da entrevista foi uma escolha do ex-ministro, o Ernesto Cafés, um ambiente aconchegante que ele costuma frequentar aos domingos.
– Boa tarde, Aninha. Tudo bem com você? Um café com leite – pede o ministro à garçonete, que vez por outra ainda serve tapioca doce para o ilustre frequentador.
Entre máquinas de torrefação e cafés aromáticos, Ayres começa a filosofar na tarde nublada da última quarta-feira em Brasília, distante do Supremo, que naquele dia decidia as penas do delator Roberto Jefferson e do deputado João Paulo Cunha. Ao longo de quase duas horas de entrevista, cria neologismos como insimilar e cita desde gurus indianos como Jiddu Krishnamurti e Osho (Rajneesh) até o dramaturgo inglês William Shakespeare, fala de pequenos prazeres como tocar violão e dos preparativos para o lançamento de seu sétimo livro de poesia, DNAlma, projeto que havia abandonado por não achar conveniente lançá-lo em meio ao julgamento do mensalão por conta de liberdades que concede enquanto escreve.
– Escrevo como quem respira, e a publicação naquele momento me traria problemas – reconhece.
Afinal, o livro contém poemas curtos, tipo haicai, com pérolas como: “O que certos políticos sabem cerzir, são as meias verdades”.
Ayres Britto estreia como articulista de ZH
Ayres faz questão de frisar que um dos prefaciadores é o poeta gaúcho Carlos Nejar e que irá dedicar a obra a vários escritores, entre eles Fabrício Carpinejar, a quem lamenta não conhecer, mas admira a ponto de citar oxímoros de cor. Durante a conversa, Ayres carrega o entusiasmo do menino que um dia sonhou em ser jogador de futebol. Ele mesmo confessa que era um craque, fazia 400 embaixadinhas e dominava a bola com os dois pés. Mas o pai, um poeta e juiz observador, preconizou:
– O seu negócio é filosofia, meu filho. Você é um homem das letras!
No próximo domingo, Ayres Britto estreia como articulista mensal de Zero Hora, e os leitores poderão desfrutar dessa vocação. A seguir, os principais trechos da entrevista a ZH:
Zero Hora – O senhor comentou durante o julgamento do mensalão que condenar alguém deixa na boca um gosto de jiló. Esse gosto já passou?
Ayres Britto – Sim. Um juiz criminal tem de julgar com o máximo de cuidado para não se sentir culpado ao culpar. No começo, ou até a metade do julgamento, o meu sono estava mais fatiado do que a metodologia usada por Joaquim Barbosa para o julgamento. E creio que isso acontecia com os demais ministros. Por isso falei sobre gosto de jiló, mandioca brava e berinjela crua. Você fica se questionando o tempo todo. Quando o caso é de condenação, tem de condenar. Você condena contristadoramente, amargamente, principalmente se a condenação for para aplicar a pena privativa de liberdade.
ZH – Como o senhor vê os comentários de que há exagero nas penas do julgamento do mensalão?
Ayres – Primeiro, o Supremo fixou uma pena a partir do voto do relator (Joaquim Barbosa), que, na maioria das vezes, preponderou sobre o voto do revisor (Ricardo Lewandowski). Se convencionou para um segundo momento alguns ajustes, para que o princípio da proporcionalidade seja observado ao máximo. Alguns ajustes ainda virão, sobretudo por efeito da distinção entre crime continuado e concurso material de crimes. Isso tudo ficou ajustado, é possível, portanto, que mais adiante haja uma pequena redução nas penas.
ZH – Como o senhor vê as manifestações de condenados com relação ao Supremo? É um amadurecimento da democracia ou uma afronta à Corte?
Ayres – Vejo a irresignação dos réus como uma reação natural de quem vê o processo pelo prisma do personalíssimo, que diz respeito aos interesses deles. Essa irresignação fica no princípio da liberdade de pensamento e expressão. Nada a censurar. Agora, a minha convicção é de que o Supremo foi serviente do direito positivo brasileiro ao emitir os dois juízos centrais: o primeiro de condenação e o segundo de apenação, fazendo com transparência, responsabilidade, cuidado técnico e isenção.
ZH – É difícil não ceder à pressão da opinião pública num julgamento como o do mensalão?
Ayres – Tenho para mim que o Supremo fez mais à opinião pública do que foi influenciado por ela. Não vamos inverter as coisas. À medida que o processo ia transcorrendo e os debates entre os ministros do Supremo se travando, a opinião pública foi se formando. Mas não é só: um ministro do Supremo é vacinado contra qualquer tipo de pressão.
ZH – O julgamento surpreendeu em parte o cidadão, que não esperava ver grandes políticos condenados. Fica um novo padrão para nossa política?
Ayres – Sou de formação holista, tendo a ver as coisas por um prisma esférico. Quando você vê a realidade, inclusive jurídica, esfericamente, você a vê por todos os ângulos. O que tem sucedido no Supremo na última década? É só você pensar: combate ao nepotismo, células-troncos, Lei Maria da Penha, liberdade de imprensa, homoafetividade, Lei da Ficha Limpa, fidelidade partidária, Marcha da Maconha. O Supremo vem com histórico de decisões que influenciam o modo de agir e pensar dos brasileiros, está mudando a cultura brasileira para mais próxima da democracia, do não preconceito e do civismo.
ZH – A tensão entre relator e revisor existia nos bastidores?
Ayres – Em algumas poucas oportunidades, sim. Houve tensão nos bastidores. Mas a minha opinião final sobre os ministros é favorável. Acho que, no limite, um ministro do Supremo é plenamente consciente de que o senso de institucionalidade deve preponderar sobre o senso de vaidade, egocentrismo ou coisa que o valha.
ZH – São as vaidades que fazem com que os ministros briguem entre si?
Ayres – Não diria as vaidades, diria o pluralismo, a diversidade, que é própria da vida e do ser humano. Há um contraditório argumentativo entre os juízes de um mesmo colegiado. E, mais do que saudável, é necessário para legitimar a decisão. Como presidente, busquei criar o maior clima possível de liberdade para que as discussões aflorassem.
ZH – As transmissões do julgamento pela TV proporcionam um espetáculo?
Ayres – Sou favorável à visibilidade de Executivo, Legislativo e Judiciário. A exposição em excesso só influencia julgadores imaturos. Os julgadores amadurecidos nas lides forense e judiciária tiram de letra. Eu mesmo nem percebo que estou sendo filmado, você se habitua.
ZH – Mas, depois do mensalão, o Supremo pode recuar sobre a transmissão das sessões na TV?
Ayres – Acho que não. Vamos ter vantagens e desvantagens. Desvantagens: o ministro se sente, digamos, protagonista social mais do que judicial. Ele se sente alvo das atenções de todo o país, com o risco de propender ou resvalar para o estrelismo, o vedetismo, o marketing pessoal, a chance de sentir um pop star, reconhecido nas ruas, com foto nos jornais, imagem no noticiário. É o que de pior pode acontecer você se sentir uma estrela. Isso acontece se você for imaturo. E ali não tem ninguém imaturo. Dá para administrar a exposição sem se deixar afetar por ela.
ZH – E as vantagens?
Ayres – Você requinta o voto. Ninguém quer passar recibo de decadente, de leviano, de comparativamente fraco no contexto dos outros ministros. Ali todo mundo tem que transformar os pré-requisitos de investiduras em requisitos de desempenho. A tendência de um ministro do Supremo é dizer “eu tenho uma obrigação”. E, para isso, tenho que ser preparado tecnicamente o tempo todo e castamente ético.
ZH – O senhor falava que a forma de honrar a indicação para ministro do STF é ser independente.
Ayres – O melhor modo de honrar o nomeante é você ser independente, honesto, corajoso. Do ângulo do juiz, essa cobertura da imprensa obriga você a se comportar em público sem pagar mico. Isso é excelente, você toma cuidados para que suas virtudes aflorem e seus defeitos fiquem submersos. Agora, do ângulo do cidadão, ele começa a internalizar a ideia jurídica de que é direito dele saber como julgam os magistrados. É um direito do cidadão ver a decisão sendo formada passo a passo, momento a momento. E o cidadão vai se habituando a cobrar coerência do julgador. A maior de todas as coragens para o Judiciário é a coragem de assumir a sua independência.
ZH – Como o senhor vê essas críticas de que o José Dirceu foi condenado sem provas e de que a Corte teria usado apenas indícios?
Ayres – É um direito de todo o réu persistir na sua defesa. A Constituição assegura ao réu a intransigente defesa própria ou a não autoincriminação. Isso incorpora o direito de se insubmeter às decisões no plano argumentativo. Agora, quando dizem que o Supremo inovou ou produziu julgamento heterodoxo, eu digo que não, absolutamente não. Heterodoxa é a causa.
ZH – Por quê?
Ayres – Nunca se viu no ponto de largada de uma ação penal 40 réus pertencentes às mais altas esferas da sociedades: governamental, política, empresarial, bancária. Nunca se viu um conjunto de crimes tão graves, tão numerosos e entrelaçados. Corrupção ativa, corrupção passiva, lavagem de dinheiro, evasão de divisas, gestão fraudulenta, você nunca viu isso. Então, insimilar é o caso com quase 60 mil páginas, 600 testemunhas. E o Supremo teria de tomar uma decisão afeiçoada a heterodoxia do caso, e o fez tecnicamente, com toda isenção e transparência.
ZH – O senhor foi filiado ao PT nos seus áureos tempos. Na sua opinião, o que fez com que o partido perdesse o que ele mais pregava?
Ayres – Faço uma distinção. Não é o PT que está sendo julgado, porque os réus são dirigentes altivos do PT. E o PT, mais até do que qualquer outro partido, pratica um pluralismo de tendências que me obriga a fazer essa distinção. No PT, há quadros, personalidades que tenho como dignas de toda admiração, de todo respeito, a partir do governador do Rio Grande do Sul, o Tarso Genro. Agora, se você quiser uma opinião um pouco mais sociológica, diria que aconteceu com o PT o que aconteceu com o PSDB. Esses dois partidos encarnavam o espírito de resistência e chegaram ao poder máximo. PSDB com Fernando Henrique, PT com Lula. Observou-se no governo do PSDB um certo recuo ideológico. O ímpeto transformador dos nossos costumes políticos foi sensivelmente reduzido. E o mesmo aconteceu com o PT. Do ponto de vista social, o Brasil melhorou, tanto no governo do PSDB quanto no do PT. Mas a qualidade da vida política do país, não. Os dois falharam nisso.
ZH – Há um movimento na internet que defende Joaquim Barbosa para presidente da República. Qual a sua opinião?
Ayres – Faz parte da excitação cívica incomum em nosso país ao perceber que um princípio fundamental de estruturação das sociedades civilizadas está sendo aplicado pelo Supremo. O princípio de que a lei é igual para todos, de que ninguém está acima da lei. Como o ministro Joaquim ganhou mais projeção pelo fato de ser o relator, ele passa a ser visto como salvador da pátria. Mas é apenas uma euforia que logo refluirá, porque o ministro não tem a menor pretensão de ser presidente.
ZH – O senhor é a favor de que os ministros do Supremo tenham mandatos, como os políticos?
Ayres – Sim. Chega um tempo em que o cargo tem o direito de nos ver pelas costas. Acho que entre oito e 12 anos está de bom tamanho para o exercício do cargo.
ZH – O desfecho do mensalão ajuda a mudar o jeito de fazer política?
Ayres – Sinaliza mais do que uma mudança, uma transformação, na linha do que disse Shakespeare: transformação é uma porta que se abre por dentro. Transformar é mais do que mudar, porque significa você se ver ejetado para o plano da consciência, o mais alto do ser. Transformação significa atuar na cultura de um povo. Quando você atua na cultura, você deflagra comportamentos de massa muito mais conscientes e sem possibilidade de retorno precedente. Sinaliza uma transformação nos nossos costumes políticos para melhor. O que o Supremo está dizendo é o seguinte: há um modo de fazer política, há um modo de fazer coalizão e alianças políticas que o Direito brasileiro execra, excomunga, não aceita.
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