REVISTA VEJA, EDIÇÃO 2286 DE 12/09/2012
Eliana Calmon, em entrevista: “no mensalão, o judiciário também está sendo julgado”
Entrevista de Rodrigo Rangel
A ministra deixa a Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça certa de que a condenação dos mensaleiros vai levar à tolerância zero com a corrupção nos tribunais brasileiros
Eliana Calmon é capaz de ficar horas e horas falando sobre culinária. Sua especialidade mais admirada, porém, é outra. Há dois anos, ela assumiu o cargo de corregedora do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) prometendo combater com rigor os desmandos dos juízes. Não era promessa de político. Antes disso, já tinha se envolvido em sonoras brigas no Superior Tribunal de Justiça (STJ) ao denunciar que alguns de seus colegas faziam conchavos para interferir na escolha dos novos integrantes da corte e, assim, influir em suas futuras decisões.
No CNJ, a ministra apontou a existência de “bandidos escondidos atrás de togas”, generalização que atraiu sobre ela a ira da categoria. Sob seu comando foi aberto um número recorde de processos para apurar a conduta irregular de juízes. Na semana passada, antes de deixar o cargo de corregedora e voltar ao STJ, a ministra fez a VEJA um balanço de sua gestão.
O julgamento do mensalão terá algum impacto sobre a Justiça brasileira como um todo?
Esse é um julgamento de importância fundamental para o Brasil, porque toda a nação está examinando como se comportará o Poder Judiciário. O Judiciário também está sendo julgado. Esse julgamento vai refletir o que é a Justiça brasileira. Os ministros podem condenar ou absolver, mas terão de mostrar com clareza por que estão condenando ou absolvendo. Isso está sendo feito.
O rigor que os ministros do Supremo têm demonstrado com relação à corrupção reflete uma mudança de parâmetros?
O Supremo faz com que a magistratura se enquadre num novo modelo. Toda carreira — e a magistratura em especial vive de lição e exemplo. Temos de ser exemplo para as pessoas que estão abaixo de nós. No momento em que o Supremo ensina a lição e dá exemplo, vira referencial.
O juiz de comarca passa a ter referência, admiração, e passa a trabalhar para se igualar àqueles que ele admira no topo da hierarquia. Quando o Supremo faz um julgamento técnico, sério e até rápido, com votos compreensivos, como tem sido neste caso, isso transmite credibilidade ao povo brasileiro.
O Supremo está dizendo que a corrupção, que durante dois séculos reinou neste país, a partir de agora tem um freio, e esse freio está no Poder Judiciário. Não haverá mais tolerância com a corrupção. Não tenho dúvida de que isso já está provocando mudanças nos planos de certos bandidos, inclusive os de toga.
Por que essa atitude mais proativa em defesa do bem público demorou tanto a chegar ao Poder Judiciário?
A Justiça não se apercebeu das mudanças que a Constituição trouxe. Na medida em que o Judiciário não tem consciência de seu papel, vira o chancelador do que os outros poderes decidem. O Judiciário demorou a perceber que tem poder próprio e não deve funcionar como extensão dos outros poderes.
A senhora deixa o Conselho Nacional de Justiça mais assustada ou mais aliviada?
Conheci as entranhas do Poder Judiciário e pensei que a situação estivesse melhor. Na Corregedoria, eu vi a Justiça em uma situação muito negativa. A gestão, por exemplo, ainda é muito ruim. Mas saio aliviada porque me aproximei muito dos tribunais, que perceberam que com boa gestão é possível melhorar.
Não digo que fiz um saneamento, mas fiz parceria com os presidentes dos tribunais. São Paulo é um exemplo que me deixa maravilhada. Era um tribunal fechado, que nunca aceitou o CNJ, mas no fim conseguimos avançar. É preciso eliminar de vez o patrimonialismo e o compadrio. Alguns tribunais até hoje fazem favores ao governador, e o governador arruma emprego para parentes de juízes.
A senhora gerou uma crise sem precedentes no Judiciário quando disse que há bandidos escondidos atrás de togas. Eles existem mesmo?
É claro que há bandidos de toga. É só olhar o número de juízes afastados por improbidade, olhar o número de investigações instauradas nos últimos tempos. Os números são grandes. Olhe que a Corregedoria do CNJ tem uma estrutura pequena para tantos problemas, e não temos condições de descobrir tudo.
Aquilo que eu falei, e não foi generalizando, falei numa linguagem forte para mostrar que muitas vezes as pessoas querem se esconder atrás da toga porque buscam a proteção que o cargo dá. Na verdade, eu acabei sendo intérprete da consciência coletiva.
Qual foi a parte mais difícil do trabalho da senhora como corregedora?
A função disciplinar é difícil porque há uma grande resistência por parte das associações de juízes. O corporativismo é forte. Ainda pensam que, se acharmos corrupção, temos de resolver a questão internamente, sem levá-la ao conhecimento da sociedade. Eu penso diferente.
Nós temos, sim, de levar as mazelas do Judiciário ao conhecimento da sociedade. Uma das punições é justamente essa. Até porque a legislação que trata de punições a juízes é muito antiga. Por ela, a punição máxima para um desembargador é a aposentadoria. Se não for uma falta gravíssima, ele ficará sem punição. Daí eu acho que uma das penas mais temidas é a divulgação daquilo que for constatado.
Qual é o perfil desses “bandidos de toga” a que a senhora se refere?
Obviamente não estou afirmando que todos os juízes que dizem só falar nos autos são bandidos, mas o criminoso de toga tende a ser um juiz hermético, formalista, que fala pouco e não recebe as partes. Mas ele está apenas se escondendo atrás do formalismo. Essa atitude o beneficia. O objetivo dele é fazer da Justiça um balcão de negócios. Ele sabe quais processos podem render dinheiro. Existem alguns nichos preferenciais, como os processos por dano moral.
Por quê?
Porque o dano moral não é mensurável pela lei. Os bancos também são vítimas frequentes. Os juízes dão decisões, impõem multas estratosféricas e mandam depositar o dinheiro imediatamente. Muitas vezes o juiz se associa ao advogado e divide os lucros. É claro que, em um universo de 16000 juízes, nem 2% fazem isso, mas o estrago para a carreira é muito grande. Essa é a pior face da magistratura.
A senhora fala muito da “intimidade indecente” entre o Judiciário e a política. Por que ela teima em existir?
Isso vem de dois séculos. O Judiciário sempre foi conivente com os outros poderes, sempre foi um chancelador do que os outros poderes decidiam. Até hoje há juízes que comungam da ideia de que é preciso ser amigo do rei.
O modelo de nomeação de juízes de tribunais superiores, que são escolhidos politicamente por decisão do presidente da República, contribui para essa relação?
Esse é o caminho. Em todos os países, quem escolhe os ministros da Suprema Corte é o presidente da República. Pensei muito nisso, inclusive quando passei por esse processo para chegar ao STJ. É doloroso para um juiz de carreira enfrentar um processo tão político. Você aprende que um magistrado deve ficar afastado da política, não deve se imiscuir na política, mas na hora H tem de passar a cuia entre os políticos pedindo o favor da indicação.
Existe uma maneira de quebrar essa situação de dependência do Judiciário em relação aos políticos?
Do ponto de vista formal, o processo de escolha de ministros de tribunais superiores é perfeito. O indicado é escolhido pelo presidente da República e submetido ao Senado, que o sabatina para ver se tem notável saber jurídico. Tudo isso é público e as pessoas podem avaliar se o indicado tem os requisitos necessários para o cargo. Tudo perfeito. Mas só na teoria.
Na prática é diferente. Falta responsabilidade. Dentro do Judiciário, no qual se diz que não existe política, há a política miúda dos grupelhos que se acertam para escolher quem vai compor as listas de indicados. O Executivo escolhe de acordo com os apoios políticos, ou seja, os padrinhos.
Por sua vez, o Legislativo, que deveria analisar o saber jurídico e a reputação ilibada do indicado, não faz o que deve. Antes da sabatina, o indicado visita os gabinetes dos senadores para amortecer intervenções que não sejam do seu agrado. A sabatina vira apenas uma formalidade.
A senhora também teve padrinhos?
Lógico. Todo mundo busca apoio, só que ninguém diz. Eu tive como padrinhos os senadores Antonio Carlos Magalhães, Renan Calheiros, Jader Barbalho e Edison Lobão. Amigos me levaram até eles, e eles se tomaram meus padrinhos.
Esse apadrinhamento não é cobrado depois, na forma de algum favor?
Imagino que sim. A mim nunca fizeram pedido, porque quando cheguei lá coloquei tudo às claras, incluindo os nomes de quem me indicou. Quem vai pedir alguma coisa a uma língua ferina como esta minha? Nós precisamos é de seriedade institucional.
Na hora de escolher alguém para um cargo relevante, não se pode pensar em colocar o amigo, alguém que vá fazer favor. Tem de ser o melhor possível, para fazer justiça, para ser um bom ministro.
A senhora foi acusada de abuso nas investigações de juízes especialmente quando começou a apurar suspeitas de enriquecimento ilícito. A reação foi exagerada?
Eu tratei as questões do Judiciário de forma muito incisiva e crua. E isso chocou um pouco. É um poder muito fechado e corporativista, que se sentiu agredido. Mas eu falei o que tinha de falar, e fiz isso para chocar mesmo, porque, se não chocasse, não causaria o efeito que causei. Eu estava disposta a mudar, e ninguém muda comodamente. A gente só muda quando choca.
A senhora prevê alguma hostilidade na sua volta ao Superior Tribunal de Justiça, no qual comprou brigas?
Uma dessas brigas foi criticar a atuação de filhos de ministros como advogados na corte. Esse problema resiste no STJ. Antigamente os filhos de ministros viviam como funcionários públicos. Quando nós combatemos o nepotismo e achamos que tínhamos realizado uma grande coisa, combatemos um problema e o outro ficou. Não se pode impedir que filhos de ministros advoguem.
O grande problema é o fato de eles usarem seu nome para fazer cooptação de clientela. Eles dizem ao cliente que têm influência no tribunal porque são filhos de ministros. No meu gabinete, eles não têm vez nem para marcar audiência. Nem filho de ministro nem ministro aposentado atuando, que é outra coisa imprópria mas existe. O ministro se aposenta e vai fazer lobby no tribunal. Nós precisamos acabar com essa prática, não dando chance de aproximação.
Por que essa prática resiste, apesar de ser imprópria?
Muitas vezes esses filhos de ministros não têm nem procuração nos autos. Eles não fazem sustentação oral, não fazem nada, só acompanham outros advogados para facilitar o acesso. Entram apenas para dar a impressão ao cliente de que realmente têm chance de ganhar, não por ter o direito, mas por influência.
Em alguns gabinetes, dizem que isso funciona. Vende-se a ideia de que filho de ministro faz milagres. Faz milagres porque é mais inteligente? Não, é porque, se não der jeito, vai fazer safadeza. É a advocacia de lobby, que não se sustenta pelas razões jurídicas, mas pelas razões extrajurídicas, de amizade, de afeto, de relacionamentos.
Qual é a consequência mais visível desse tipo de situação?
Em primeiro lugar, isso desacredita a Justiça. Além do mais, é uma absoluta injustiça para com os advogados que são sérios, trabalhadores e vão à tribuna defender o direito. A advocacia de lobby causa um mal enorme e precisa ser banida, é um horror. É obrigatório acabar com isso. Cabe aos próprios ministros coibir essa prática. Isso só depende de nós. Basta perguntar ao “advogado” que chega ao gabinete se ele tem procuração nos autos. Se não tem, o ministro tem de dizer: “O senhor ponha-se daqui para fora”.
Sua visibilidade fez surgir rumores de que poderia sair candidata a algum cargo político. Isso está nos seus planos?
Já me convidaram para ser candidata a senadora pelo Distrito Federal, mas não vou me meter em política de maneira nenhuma. Também não vou advogar. De dinheiro eu não vou precisar, porque tenho uma vida modesta e a minha aposentadoria certamente será suficiente. Penso em mais tarde, quem sabe, participar de uma entidade de combate à corrupção ou me dedicar aos livros de culinária.
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