ADRIANA IRION
COM A PALAVRA, ELIANA CALMON
Por mais de três décadas, Eliana Calmon esteve por trás de decisões emitidas pela Justiça – só no Superior Tribunal de Justiça (STJ) foram mais de 200 mil. Mas foi como corregedora nacional de Justiça, em 2011, que a baiana de temperamento forte e impulsivo sacudiu o Brasil ao dizer que bandidos se escondiam atrás de togas. Sem cerimônia, ao ferir a própria carne, a ministra atingiu em cheio uma instituição protegida pela clausura de elegantes gabinetes e tida como intocável.
A reação dos colegas foi a pior possível. Eliana não se intimidou. Nunca retirou a afirmação. Apenas ponderou que não falava de forma generalizada e que os juízes corruptos eram poucos. Eram, não. São. Aposentada depois de 34 anos no Judiciário, a ministra atesta que a corrupção no poder ainda existe e a define como “muito deletéria e perversa”.
Crítica da falta de estrutura da Justiça diante da avalanche de demandas que recebeu a partir de direitos criados pela Constituição de 1988, Eliana, 69 anos, muda agora o foco de atuação: filiada ao PSB, lutará por uma vaga no Senado em 2014. Para quem vê com surpresa o mergulho na política justamente de alguém que tantas críticas tem a ela, a juíza, com serenidade, pondera que não adianta tachar algo de ruim sem tentar mudar a situação.
Divorciada, com um filho e dois netos, a baiana que foi a primeira mulher a ingressar no STJ, tendo como padrinho o ex-governador e ex-senador baiano Antonio Carlos Magalhães (ACM), toma como regra para suas ações na política uma velha conhecida: a lei. Sua campanha será um trabalho norteado pela legislação eleitoral. E antes que mais pessoas riam da pretensão, ela já se antecipa: “Não me incomodo de ser ingênua”.
Conhecida pelas falas fortes e a imagem do dedo em riste, Eliana – que dribla a correria do dia a dia cozinhando para amigos – diz que, no Brasil, brinca-se de fazer política.
Confira trechos da entrevista que concedeu a Zero Hora por telefone:
A senhora é conhecida no Judiciário pelo jeito explosivo de agir e de falar. Como será na política?
A mesma coisa. Ainda não está absolutamente decidido se vou concorrer. A ideia é fazer uma política diferente, com sinceridade, onde a gente possa conversar, dizer o que pensa. Pode me perguntar: “Isso vai dar certo?” Não sei, é uma tentativa.
O plano é concorrer ao Senado?
É o que pretendo. Mas estou fazendo análises.
De onde veio a influência para seguir a carreira na Justiça?
Foi espontâneo. Na minha família, não tem juristas, meu pai era pequeno empresário, minha mãe, professora que se dedicou ao lar. Sempre disse que queria fazer Direito. Na escola primária, falava muito bem, recitava poesia, tinha desenvoltura para falar em público. Talvez isso tenha influenciado. Meu pai sempre dizia que eu seria boa advogada. Quando fui fazer universidade, escolhi logo Direito. No curso, sabia exatamente o que queria: ser promotora. Entendia que o Ministério Público era uma grande instituição.
Como foi esse início de carreira?
Comecei pelo Ministério Público Federal. Pensava que começaria a carreira no MP Estadual e iria para o interior da Bahia. A gente muda os caminhos, mas não muda o destino. Acabei sendo promotora federal e procuradora da República no Estado de Pernambuco. Depois fui para Brasília como procuradora e lá fiquei até que decidi abandonar o Ministério Público para fazer concurso para a Justiça Federal.
Por que a mudança na carreira?
A política era a do governo militar. O Ministério Público, órgão que é fiscal da lei, defensor dos pobres, das minorias, estava totalmente nas mãos do Executivo, e isso me deixava sem independência. Quando houve a invasão da Universidade de Brasília (pelo Exército, por conta de movimentos políticos), em 1977, 1978, houve tentativa dos estudantes de tirar o pessoal de lá. Foi impetrado um mandado de segurança que veio parar nas minhas mãos. E foi nesse momento que aconteceu a interferência do procurador-geral da República (chefe do Ministério Público) para que não fosse dado o parecer em favor dos estudantes. Isso me desagradou tremendamente. Disse a ele que não daria o parecer, que ele tinha um cargo político, mas tinha um cargo técnico, de forma que ele estava à vontade para designar outro para dar o parecer, o que aconteceu. O processo saiu das minhas mãos, e outro colega deu parecer contrário aos interesses dos estudantes.
O que o procurador, seu chefe, alegou ao pedir que a senhora desse parecer contrário aos estudantes?
Disse que o Ministério Público não deveria se colocar contrário ao governo. Que se o juiz quisesse dar (decisão favorável), que desse. Naquele momento, entendi que tinha de procurar um ambiente mais independente para um técnico do Direito, pois assim eu me colocava. Ali, não tinha ideologia, não tinha questão de simpatia, questão partidária, nada. Quem estava falando ali era uma técnica do Direito que queria que fosse aplicada a lei, porque o MP é o fiscal da lei. Compreendi naquele momento que o MP não tinha a independência.
O MP tem independência hoje?
A Constituição de 1988 elegeu o MP como órgão que vai desbravar e fazer firmar a democracia. Está diferente hoje. É independente.
E a Justiça, tem independência?
A Justiça teve uma mudança radical com a Constituição de 1988, mas não se estruturou para as atribuições que ganhou com a Constituição, o que gerou um desequilíbrio.
Dá para reverter esse desequilíbrio?
Sim, é o que o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) está querendo fazer.
Como ficou sua relação com o procurador-geral no episódio da Universidade de Brasília?
Ele ficou profundamente impressionado com minha posição de independência. A partir daí, tudo que ele queria e que fosse isento de qualquer questão política, ele me designava. Foi uma coisa importante para mim. Dá para dizer que a gente não se dá mal quando é independente. As coisas podem até não acontecer como gostaríamos, mas as pessoas terminam admirando a gente por ser independente, por ser técnico. Gosto de contar essa história, acho que é uma lição de vida para os mais novos, os que estão começando, para quem tem medo de ser independente.
Como foi sua carreira no Judiciário?
São 34 anos de magistratura, sendo 10 como juíza de primeiro grau. Fui escolhida por unanimidade para figurar como desembargadora no TRF da 1ª Região. Havia ideia de que a escolha de juízes para integrar o Superior Tribunal de Justiça era política e que eu não teria chance por causa desse jeito que tenho de expor as feridas institucionais. Disse o seguinte: “Tenho que tentar. Se não tentar, não sei contar como é a história”. Um colega meu chegou a dizer: “Acho que você está certa, para Deus nada é impossível”. E eu entrei de primeira na lista tríplice (para concorrer à vaga no STJ).
A senhora pediu ajuda ao cacique baiano Antonio Carlos Magalhães (ex-senador e ex-governador, conhecido como ACM, morto em 2007) para entrar no STJ. Como foi?
Quando me candidatei, timidamente procurei um deputado federal pela Bahia (Manoel Castro, hoje conselheiro do Tribunal de Contas da Bahia). Contei que era candidata e queria saber se podia contar com os políticos da minha terra. E disse que tinha três problemas: que nunca tinham escolhido uma mulher, que o presidente da República já tinha candidato (Ellen Gracie) e que o senador Antonio Carlos Magalhães tinha um candidato da estima dele. O deputado me disse que ia consultar o Antonio Carlos, pois não via outros problemas senão aquele de haver o candidato de Antonio Carlos. O Antonio Carlos tinha um compromisso com um amigo que era tio do juiz que concorreria comigo. Mas, na lista tríplice, esse juiz não entrou. Quando entrei na lista, não tinha padrinho político. Tinha apenas uma ida a alguns gabinetes.
Como foi a interferência de ACM?
Amigos meus foram a ele disseram que na lista tinha uma baiana. Ele respondeu: “Se tem alguém da Bahia, o compromisso do presidente é com a Bahia, não é com nomes, é com a Bahia, e farei todo o empenho para ela ser escolhida”. Ele não prometia, a escolha era do presidente, mas que ele faria o que fosse possível pela Bahia. E realmente, isso aconteceu. Fui ao gabinete dele uma única vez, fui e agradeci e não mais estive com ele. Era para ser escolhida a primeira mulher a ingressar no STJ no dia 8 de março (Dia Internacional da Mulher) de 1999. Mas demorou. A nomeação só saiu em junho. Nesse período, houve muita coisa, surgiu a ideia de que eu julgava contra a União, enfim, várias futricas como Brasília é muito acostumada.
Esse apadrinhamento deixou mácula na sua história dentro do Judiciário?
Não ficou mácula porque fiz uma coisa por impulso, mas que deu certo. Quando fui sabatinada no Senado, um senador me perguntou se tive padrinhos. Disse que, se não tivesse, não estaria ali. “E a senhora pode dizer quem são seus padrinhos?” Respondi: “Perfeitamente, Antonio Carlos Magalhães”. As pessoas acharam isso uma coisa horrível, alguns disseram que era falta de pudor dizer abertamente o nome de padrinho político. Meus colegas da magistratura disseram que eu era uma anta política. Mas o tempo mostrou que eu não estava errada. Naquele momento, reconheci publicamente quem tinha me ajudado, mas disse para a nação que não poderia julgar nada que fosse de interesse do padrinho.
Em sua gestão como corregedora no CNJ, a senhora teve iniciativas polêmicas, uma delas, a de investigar juízes, questionar a morosidade das corregedorias. Houve mudanças?
Houve, sem dúvida. O CNJ sempre foi muito criticado pelos magistrados corporativistas, aqueles que querem que a estrutura continue a mesma para os juízes. Os corporativistas são saudosistas. Nunca aceitaram a ingerência do CNJ na administração da Justiça. O CNJ se propõe a fazer com que os tribunais demorem menos, que acabem as práticas administrativas que emperram a Justiça.
A senhora fala dos corporativistas. E os “bandidos de toga”, cuja citação lhe rendeu reações negativas?
Foi uma frase forte, de efeito, que distorceram, dizendo que eu tinha generalizado, que eu disse que os juízes eram bandidos de toga, mas isso não aconteceu, basta ver o contexto. Com a independência dada ao juiz pela Constituição de 1988 e pela necessidade de tudo passar pelo Judiciário, que é uma visão moderna, o Judiciário é o poder que mais está equidistante do poder econômico, que, por seu lado é quem mantém e nutre o poder político. Dentro dessa filosofia moderna, chegaram ao Judiciário juízes não vocacionados e com seleção rápida. Como houve muita demanda, o processo de escolha passou a ser rápido, sem avaliação da vida pregressa. Algumas pessoas desqualificadas começaram a chegar ao Judiciário. E essas, com as prerrogativas da magistratura, começaram a cometer crimes, sentenças vendidas. Encontramos muitos absurdos. Ainda se encontra.
Onde estão esses bandidos de toga?
O número de juízes incorretos, que são venais, é muito pequeno, mas o estrago que eles fazem é muito, muito grande. Porque todo mundo sabe, nada se esconde. As comunicações hoje são muito fáceis. E cada bandido de toga que faz uma falcatrua isso é espalhado e fica como se fosse o Judiciário como um todo. E não é verdade. É uma minoria. Por isso, minha luta é por afastar as maçãs podres do Judiciário.
É justo que os “bandidos de toga”, quando são alvo de suspeitas, recebam como punição administrativa a aposentadoria com seus altos salários e benefícios?
O juiz paga por sua aposentadoria. Não é prêmio, ele paga para ter esse direito. Mas o juiz tem proventos integrais, diferente de outras categorias. As pessoas aposentadas pelo INSS sofrem perda. É aí que ocorre o inconformismo de alguém que paga INSS por 30 anos e se aposenta ganhando uma merreca sem ter feito nenhum mal. E outro que paga o INSS, se aposenta porque cometeu crime e vai para casa ganhando proventos integrais. Porque foi um mau juiz ele não pode virar um pária, que fique na sociedade sem dinheiro para viver. Mas, se foi aposentado por pena imposta, naturalmente que não pode ter as mesmas regalias que tem outro colega dele que se aposentou dentro da honestidade e do cumprimento do dever. Isso é uma legislação que precisa ser revista.
A senhora tem inimigos?
Não considero inimigos. Tem pessoas que não gostam de mim, mexi com muita gente, afastei muitos juízes. E eles têm parentes, têm amigos que certamente ficam sentidos, principalmente com a cultura do povo brasileiro de estarmos sempre ligados aos amigos. Somos muito mais amigos dos amigos do que amigos institucionais.
A senhora já sofreu ameaça?
Não, só bobagem. Uma vez, a Polícia Federal pegou um e-mail de alguém que estava sendo processado por mim e que fazia uma recomendação a um terreiro de macumba para fazer alguma coisa que me neutralizasse. Foi bem interessante e não foi na Bahia, não, foi em Tocantins.
A corrupção dentro da Justiça é mais difícil de ser combatida do que na política?
É tão difícil quanto. Processar corrupto que esteja no poder, que seja agente político, é sempre muito difícil, porque nós protegemos muito os nossos agentes políticos. Existe cultura de impunidade para os agentes políticos. Mas a corrupção do juiz é muito deletéria, porque ela pega o direito do cidadão que colocou nas mãos do juiz a solução do seu problema. O Estado exige que você não faça Justiça com as próprias mãos. Quando seu direito é transgredido, você precisa ir ao Judiciário para resolver isso e você não escolhe o juiz. Você escolhe médico, dentista, engenheiro, arquiteto, mas o juiz você não escolhe. É a lei que diz qual juiz é competente para resolver seu problema. E se ele for corrupto? Vê o estrago que ele faz na sociedade, para as empresas, para a família, para a cidadania. A corrupção do juiz é muito deletéria, muito perversa, muito mais que a do político. O político não age sozinho, age em colegiado difuso, uma corrupção de pensamento, venda de um projeto, de um voto para este ou aquele projeto, fica mais distante do cidadão. E a do juiz não, é mais presente.
O que é preciso fazer para moralizar o Judiciário, torná-lo menos moroso?
O CNJ está punindo, afastando juízes e mostrando a que veio. E está com práticas interessantes para destravar o Poder Judiciário.
O juiz precisa mesmo de dois meses de férias por ano?
Não. O juiz tem de ser sobretudo cidadão brasileiro. E como cidadão brasileiro, naturalmente, ele tem de seguir as mesmas pegadas.
Como a senhora avalia o resultado do julgamento do mensalão?
É um divisor de águas. Nós mostramos que há Justiça neste país, mesmo quando existem poderosos, pessoas com influência política.
O que pensa do ministro Joaquim Barbosa, que também tem um perfil controverso?
É um grande magistrado, vem desafiando toda uma história de impunidade. Que a Justiça seja feita, isso foi muito importante para a nação. Agora, ele tem temperamento difícil, isso é inegável. É o único reparo que se faz ao comportamento dele. É pavio curto, não tolera irreverências, coisas que acha fora de padrão.
A senhora sempre foi muito crítica da interferência de políticos no Poder Judiciário. Por que a decisão agora de ingressar na política?
É no momento em que entendo que estamos vivendo uma crise na qualidade dos políticos brasileiros. Entendo que é preciso que a cidadania se aproxime. Se diz que a política é sujeira, é insinceridade, é safadeza. Aí os cidadãos de bem se afastam. Eu disse: “Se você acha tudo isso, o que você fez para melhorar?” Tem de fazer alguma coisa. Esse foi meu raciocínio. Minha ideia é provar que existe lugar para uma pessoa como eu. Pode ser que eu nem prove, que nem chegue até lá. Mas para saber disso é preciso tentar.
O que a senhora não aceitará fazer de jeito nenhum na política?
Para mim, meu foco é a política que está estabelecida dentro da lei eleitoral. Tudo fora da lei não farei. E quando digo isso, dão risada, dizem que sou uma grande ingênua. Sou considerada uma candidata diferente pela minha ingenuidade. Não me incomodo de ser ingênua. Vamos ver.
A Justiça que a senhora deixa é a é acessível para o cidadão comum?
Depois da Constituição de 1988 o Judiciário ficou melhor, mais independente. Também houve maior acesso à Justiça, porque a grande massa dos direitos novos, de terceira geração – meio ambiente, consumidor –, fez com que o cidadão chegasse à Justiça. Mas lamentavelmente a Justiça não se preparou para enfrentar essas mudanças, e foi surpreendida com a avalanche de demandas. Hoje, temos uma Justiça que não é boa por falta de infraestrutura adequada e de uma cultura que ficou arraigada a um período anterior à Constituição de 1988.
Dá para dizer que a gente não se dá mal quando é independente. (...) As pessoas terminam admirando a gente por ser independente, por ser técnico.
Alguns disseram que era falta de pudor dizer o nome de padrinho político. (...) Naquele momento, reconheci quem tinha me ajudado, mas disse para a nação que não poderia julgar nada que fosse de interesse do padrinho.
E cada bandido de toga que faz uma falcatrua isso é espalhado e fica como se fosse o Judiciário como um todo. E não é verdade. É uma minoria. Por isso, minha luta é por afastar as maçãs podres do Judiciário.
Por mais de três décadas, Eliana Calmon esteve por trás de decisões emitidas pela Justiça – só no Superior Tribunal de Justiça (STJ) foram mais de 200 mil. Mas foi como corregedora nacional de Justiça, em 2011, que a baiana de temperamento forte e impulsivo sacudiu o Brasil ao dizer que bandidos se escondiam atrás de togas. Sem cerimônia, ao ferir a própria carne, a ministra atingiu em cheio uma instituição protegida pela clausura de elegantes gabinetes e tida como intocável.
A reação dos colegas foi a pior possível. Eliana não se intimidou. Nunca retirou a afirmação. Apenas ponderou que não falava de forma generalizada e que os juízes corruptos eram poucos. Eram, não. São. Aposentada depois de 34 anos no Judiciário, a ministra atesta que a corrupção no poder ainda existe e a define como “muito deletéria e perversa”.
Crítica da falta de estrutura da Justiça diante da avalanche de demandas que recebeu a partir de direitos criados pela Constituição de 1988, Eliana, 69 anos, muda agora o foco de atuação: filiada ao PSB, lutará por uma vaga no Senado em 2014. Para quem vê com surpresa o mergulho na política justamente de alguém que tantas críticas tem a ela, a juíza, com serenidade, pondera que não adianta tachar algo de ruim sem tentar mudar a situação.
Divorciada, com um filho e dois netos, a baiana que foi a primeira mulher a ingressar no STJ, tendo como padrinho o ex-governador e ex-senador baiano Antonio Carlos Magalhães (ACM), toma como regra para suas ações na política uma velha conhecida: a lei. Sua campanha será um trabalho norteado pela legislação eleitoral. E antes que mais pessoas riam da pretensão, ela já se antecipa: “Não me incomodo de ser ingênua”.
Conhecida pelas falas fortes e a imagem do dedo em riste, Eliana – que dribla a correria do dia a dia cozinhando para amigos – diz que, no Brasil, brinca-se de fazer política.
Confira trechos da entrevista que concedeu a Zero Hora por telefone:
A senhora é conhecida no Judiciário pelo jeito explosivo de agir e de falar. Como será na política?
A mesma coisa. Ainda não está absolutamente decidido se vou concorrer. A ideia é fazer uma política diferente, com sinceridade, onde a gente possa conversar, dizer o que pensa. Pode me perguntar: “Isso vai dar certo?” Não sei, é uma tentativa.
O plano é concorrer ao Senado?
É o que pretendo. Mas estou fazendo análises.
De onde veio a influência para seguir a carreira na Justiça?
Foi espontâneo. Na minha família, não tem juristas, meu pai era pequeno empresário, minha mãe, professora que se dedicou ao lar. Sempre disse que queria fazer Direito. Na escola primária, falava muito bem, recitava poesia, tinha desenvoltura para falar em público. Talvez isso tenha influenciado. Meu pai sempre dizia que eu seria boa advogada. Quando fui fazer universidade, escolhi logo Direito. No curso, sabia exatamente o que queria: ser promotora. Entendia que o Ministério Público era uma grande instituição.
Como foi esse início de carreira?
Comecei pelo Ministério Público Federal. Pensava que começaria a carreira no MP Estadual e iria para o interior da Bahia. A gente muda os caminhos, mas não muda o destino. Acabei sendo promotora federal e procuradora da República no Estado de Pernambuco. Depois fui para Brasília como procuradora e lá fiquei até que decidi abandonar o Ministério Público para fazer concurso para a Justiça Federal.
Por que a mudança na carreira?
A política era a do governo militar. O Ministério Público, órgão que é fiscal da lei, defensor dos pobres, das minorias, estava totalmente nas mãos do Executivo, e isso me deixava sem independência. Quando houve a invasão da Universidade de Brasília (pelo Exército, por conta de movimentos políticos), em 1977, 1978, houve tentativa dos estudantes de tirar o pessoal de lá. Foi impetrado um mandado de segurança que veio parar nas minhas mãos. E foi nesse momento que aconteceu a interferência do procurador-geral da República (chefe do Ministério Público) para que não fosse dado o parecer em favor dos estudantes. Isso me desagradou tremendamente. Disse a ele que não daria o parecer, que ele tinha um cargo político, mas tinha um cargo técnico, de forma que ele estava à vontade para designar outro para dar o parecer, o que aconteceu. O processo saiu das minhas mãos, e outro colega deu parecer contrário aos interesses dos estudantes.
O que o procurador, seu chefe, alegou ao pedir que a senhora desse parecer contrário aos estudantes?
Disse que o Ministério Público não deveria se colocar contrário ao governo. Que se o juiz quisesse dar (decisão favorável), que desse. Naquele momento, entendi que tinha de procurar um ambiente mais independente para um técnico do Direito, pois assim eu me colocava. Ali, não tinha ideologia, não tinha questão de simpatia, questão partidária, nada. Quem estava falando ali era uma técnica do Direito que queria que fosse aplicada a lei, porque o MP é o fiscal da lei. Compreendi naquele momento que o MP não tinha a independência.
O MP tem independência hoje?
A Constituição de 1988 elegeu o MP como órgão que vai desbravar e fazer firmar a democracia. Está diferente hoje. É independente.
E a Justiça, tem independência?
A Justiça teve uma mudança radical com a Constituição de 1988, mas não se estruturou para as atribuições que ganhou com a Constituição, o que gerou um desequilíbrio.
Dá para reverter esse desequilíbrio?
Sim, é o que o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) está querendo fazer.
Como ficou sua relação com o procurador-geral no episódio da Universidade de Brasília?
Ele ficou profundamente impressionado com minha posição de independência. A partir daí, tudo que ele queria e que fosse isento de qualquer questão política, ele me designava. Foi uma coisa importante para mim. Dá para dizer que a gente não se dá mal quando é independente. As coisas podem até não acontecer como gostaríamos, mas as pessoas terminam admirando a gente por ser independente, por ser técnico. Gosto de contar essa história, acho que é uma lição de vida para os mais novos, os que estão começando, para quem tem medo de ser independente.
Como foi sua carreira no Judiciário?
São 34 anos de magistratura, sendo 10 como juíza de primeiro grau. Fui escolhida por unanimidade para figurar como desembargadora no TRF da 1ª Região. Havia ideia de que a escolha de juízes para integrar o Superior Tribunal de Justiça era política e que eu não teria chance por causa desse jeito que tenho de expor as feridas institucionais. Disse o seguinte: “Tenho que tentar. Se não tentar, não sei contar como é a história”. Um colega meu chegou a dizer: “Acho que você está certa, para Deus nada é impossível”. E eu entrei de primeira na lista tríplice (para concorrer à vaga no STJ).
A senhora pediu ajuda ao cacique baiano Antonio Carlos Magalhães (ex-senador e ex-governador, conhecido como ACM, morto em 2007) para entrar no STJ. Como foi?
Quando me candidatei, timidamente procurei um deputado federal pela Bahia (Manoel Castro, hoje conselheiro do Tribunal de Contas da Bahia). Contei que era candidata e queria saber se podia contar com os políticos da minha terra. E disse que tinha três problemas: que nunca tinham escolhido uma mulher, que o presidente da República já tinha candidato (Ellen Gracie) e que o senador Antonio Carlos Magalhães tinha um candidato da estima dele. O deputado me disse que ia consultar o Antonio Carlos, pois não via outros problemas senão aquele de haver o candidato de Antonio Carlos. O Antonio Carlos tinha um compromisso com um amigo que era tio do juiz que concorreria comigo. Mas, na lista tríplice, esse juiz não entrou. Quando entrei na lista, não tinha padrinho político. Tinha apenas uma ida a alguns gabinetes.
Como foi a interferência de ACM?
Amigos meus foram a ele disseram que na lista tinha uma baiana. Ele respondeu: “Se tem alguém da Bahia, o compromisso do presidente é com a Bahia, não é com nomes, é com a Bahia, e farei todo o empenho para ela ser escolhida”. Ele não prometia, a escolha era do presidente, mas que ele faria o que fosse possível pela Bahia. E realmente, isso aconteceu. Fui ao gabinete dele uma única vez, fui e agradeci e não mais estive com ele. Era para ser escolhida a primeira mulher a ingressar no STJ no dia 8 de março (Dia Internacional da Mulher) de 1999. Mas demorou. A nomeação só saiu em junho. Nesse período, houve muita coisa, surgiu a ideia de que eu julgava contra a União, enfim, várias futricas como Brasília é muito acostumada.
Esse apadrinhamento deixou mácula na sua história dentro do Judiciário?
Não ficou mácula porque fiz uma coisa por impulso, mas que deu certo. Quando fui sabatinada no Senado, um senador me perguntou se tive padrinhos. Disse que, se não tivesse, não estaria ali. “E a senhora pode dizer quem são seus padrinhos?” Respondi: “Perfeitamente, Antonio Carlos Magalhães”. As pessoas acharam isso uma coisa horrível, alguns disseram que era falta de pudor dizer abertamente o nome de padrinho político. Meus colegas da magistratura disseram que eu era uma anta política. Mas o tempo mostrou que eu não estava errada. Naquele momento, reconheci publicamente quem tinha me ajudado, mas disse para a nação que não poderia julgar nada que fosse de interesse do padrinho.
Em sua gestão como corregedora no CNJ, a senhora teve iniciativas polêmicas, uma delas, a de investigar juízes, questionar a morosidade das corregedorias. Houve mudanças?
Houve, sem dúvida. O CNJ sempre foi muito criticado pelos magistrados corporativistas, aqueles que querem que a estrutura continue a mesma para os juízes. Os corporativistas são saudosistas. Nunca aceitaram a ingerência do CNJ na administração da Justiça. O CNJ se propõe a fazer com que os tribunais demorem menos, que acabem as práticas administrativas que emperram a Justiça.
A senhora fala dos corporativistas. E os “bandidos de toga”, cuja citação lhe rendeu reações negativas?
Foi uma frase forte, de efeito, que distorceram, dizendo que eu tinha generalizado, que eu disse que os juízes eram bandidos de toga, mas isso não aconteceu, basta ver o contexto. Com a independência dada ao juiz pela Constituição de 1988 e pela necessidade de tudo passar pelo Judiciário, que é uma visão moderna, o Judiciário é o poder que mais está equidistante do poder econômico, que, por seu lado é quem mantém e nutre o poder político. Dentro dessa filosofia moderna, chegaram ao Judiciário juízes não vocacionados e com seleção rápida. Como houve muita demanda, o processo de escolha passou a ser rápido, sem avaliação da vida pregressa. Algumas pessoas desqualificadas começaram a chegar ao Judiciário. E essas, com as prerrogativas da magistratura, começaram a cometer crimes, sentenças vendidas. Encontramos muitos absurdos. Ainda se encontra.
Onde estão esses bandidos de toga?
O número de juízes incorretos, que são venais, é muito pequeno, mas o estrago que eles fazem é muito, muito grande. Porque todo mundo sabe, nada se esconde. As comunicações hoje são muito fáceis. E cada bandido de toga que faz uma falcatrua isso é espalhado e fica como se fosse o Judiciário como um todo. E não é verdade. É uma minoria. Por isso, minha luta é por afastar as maçãs podres do Judiciário.
É justo que os “bandidos de toga”, quando são alvo de suspeitas, recebam como punição administrativa a aposentadoria com seus altos salários e benefícios?
O juiz paga por sua aposentadoria. Não é prêmio, ele paga para ter esse direito. Mas o juiz tem proventos integrais, diferente de outras categorias. As pessoas aposentadas pelo INSS sofrem perda. É aí que ocorre o inconformismo de alguém que paga INSS por 30 anos e se aposenta ganhando uma merreca sem ter feito nenhum mal. E outro que paga o INSS, se aposenta porque cometeu crime e vai para casa ganhando proventos integrais. Porque foi um mau juiz ele não pode virar um pária, que fique na sociedade sem dinheiro para viver. Mas, se foi aposentado por pena imposta, naturalmente que não pode ter as mesmas regalias que tem outro colega dele que se aposentou dentro da honestidade e do cumprimento do dever. Isso é uma legislação que precisa ser revista.
A senhora tem inimigos?
Não considero inimigos. Tem pessoas que não gostam de mim, mexi com muita gente, afastei muitos juízes. E eles têm parentes, têm amigos que certamente ficam sentidos, principalmente com a cultura do povo brasileiro de estarmos sempre ligados aos amigos. Somos muito mais amigos dos amigos do que amigos institucionais.
A senhora já sofreu ameaça?
Não, só bobagem. Uma vez, a Polícia Federal pegou um e-mail de alguém que estava sendo processado por mim e que fazia uma recomendação a um terreiro de macumba para fazer alguma coisa que me neutralizasse. Foi bem interessante e não foi na Bahia, não, foi em Tocantins.
A corrupção dentro da Justiça é mais difícil de ser combatida do que na política?
É tão difícil quanto. Processar corrupto que esteja no poder, que seja agente político, é sempre muito difícil, porque nós protegemos muito os nossos agentes políticos. Existe cultura de impunidade para os agentes políticos. Mas a corrupção do juiz é muito deletéria, porque ela pega o direito do cidadão que colocou nas mãos do juiz a solução do seu problema. O Estado exige que você não faça Justiça com as próprias mãos. Quando seu direito é transgredido, você precisa ir ao Judiciário para resolver isso e você não escolhe o juiz. Você escolhe médico, dentista, engenheiro, arquiteto, mas o juiz você não escolhe. É a lei que diz qual juiz é competente para resolver seu problema. E se ele for corrupto? Vê o estrago que ele faz na sociedade, para as empresas, para a família, para a cidadania. A corrupção do juiz é muito deletéria, muito perversa, muito mais que a do político. O político não age sozinho, age em colegiado difuso, uma corrupção de pensamento, venda de um projeto, de um voto para este ou aquele projeto, fica mais distante do cidadão. E a do juiz não, é mais presente.
O que é preciso fazer para moralizar o Judiciário, torná-lo menos moroso?
O CNJ está punindo, afastando juízes e mostrando a que veio. E está com práticas interessantes para destravar o Poder Judiciário.
O juiz precisa mesmo de dois meses de férias por ano?
Não. O juiz tem de ser sobretudo cidadão brasileiro. E como cidadão brasileiro, naturalmente, ele tem de seguir as mesmas pegadas.
Como a senhora avalia o resultado do julgamento do mensalão?
É um divisor de águas. Nós mostramos que há Justiça neste país, mesmo quando existem poderosos, pessoas com influência política.
O que pensa do ministro Joaquim Barbosa, que também tem um perfil controverso?
É um grande magistrado, vem desafiando toda uma história de impunidade. Que a Justiça seja feita, isso foi muito importante para a nação. Agora, ele tem temperamento difícil, isso é inegável. É o único reparo que se faz ao comportamento dele. É pavio curto, não tolera irreverências, coisas que acha fora de padrão.
A senhora sempre foi muito crítica da interferência de políticos no Poder Judiciário. Por que a decisão agora de ingressar na política?
É no momento em que entendo que estamos vivendo uma crise na qualidade dos políticos brasileiros. Entendo que é preciso que a cidadania se aproxime. Se diz que a política é sujeira, é insinceridade, é safadeza. Aí os cidadãos de bem se afastam. Eu disse: “Se você acha tudo isso, o que você fez para melhorar?” Tem de fazer alguma coisa. Esse foi meu raciocínio. Minha ideia é provar que existe lugar para uma pessoa como eu. Pode ser que eu nem prove, que nem chegue até lá. Mas para saber disso é preciso tentar.
O que a senhora não aceitará fazer de jeito nenhum na política?
Para mim, meu foco é a política que está estabelecida dentro da lei eleitoral. Tudo fora da lei não farei. E quando digo isso, dão risada, dizem que sou uma grande ingênua. Sou considerada uma candidata diferente pela minha ingenuidade. Não me incomodo de ser ingênua. Vamos ver.
A Justiça que a senhora deixa é a é acessível para o cidadão comum?
Depois da Constituição de 1988 o Judiciário ficou melhor, mais independente. Também houve maior acesso à Justiça, porque a grande massa dos direitos novos, de terceira geração – meio ambiente, consumidor –, fez com que o cidadão chegasse à Justiça. Mas lamentavelmente a Justiça não se preparou para enfrentar essas mudanças, e foi surpreendida com a avalanche de demandas. Hoje, temos uma Justiça que não é boa por falta de infraestrutura adequada e de uma cultura que ficou arraigada a um período anterior à Constituição de 1988.
Dá para dizer que a gente não se dá mal quando é independente. (...) As pessoas terminam admirando a gente por ser independente, por ser técnico.
Alguns disseram que era falta de pudor dizer o nome de padrinho político. (...) Naquele momento, reconheci quem tinha me ajudado, mas disse para a nação que não poderia julgar nada que fosse de interesse do padrinho.
E cada bandido de toga que faz uma falcatrua isso é espalhado e fica como se fosse o Judiciário como um todo. E não é verdade. É uma minoria. Por isso, minha luta é por afastar as maçãs podres do Judiciário.
Ai dos que justificam ao ímpio por suborno, e aos justos negam a justiça!
ResponderExcluirIsaías 5:23