ITAMAR MELO
JUSTIÇA - UMA PENA
STF desvia atenção de casos relevantes para analisar furto de duas galinhas
Era uma vez um país de fábula, no qual o pedido de um advogado para que certo delito fosse considerado irrelevante demais para merecer a atenção da Justiça conseguiu galgar as mais altas esferas, até acabar na corte mais relevante. Nesse país de maravilhas, governado a partir de uma cidade chamada Brasília, o furto de dois galináceos com valor estimado em R$ 40 atravessou todas as instâncias do Judiciário e foi se aninhar no colo do Supremo Tribunal Federal (STF), que custa aos súditos da República R$ 500 milhões anuais.
Encarregado de analisar a liminar que extinguisse o processo, Luiz Fux decidiu que o tema terá de ser julgado mais para a frente, em caráter definitivo. A apreciação foi apresentada em quatro páginas, escrita em um idioma aparentado com o português (“neste writ, reitera a tese de aplicabilidade do princípio da bagatela no caso sub examine, tendo em vista o pequeno valor da res furtiva”) e emitido no dia 2 – embora merecesse, por justiça poética, ser datada de 1° de abril.
Nesta semana, quando finalmente veio a público que o Supremo andava às voltas com ladrões de galinha – enquanto aguardam julgamento questões como as perdas na poupança decorrentes de planos econômicos, a descriminalização das drogas e o pagamento de precatórios –, a estupefação foi generalizada.
– Quer minha opinião sobre isso? Vou ser claro, curto e grosso. Abre aspas. Ridículo. Fecha aspas – avalia o doutor em Direito Ricardo Giuliani.
Supremo já avaliou até furto de xampu
O responsável por afanar as aves, apropriadamente chamado Afanásio Guimarães, é um jovem de Rochedo de Minas (MG), uma cidadezinha de 2 mil almas. Em uma madrugada de maio, ele invadiu o galinheiro do vizinho e apanhou um galo e uma galinha. Em setembro, a denúncia foi aceita pela Justiça de São João Nepomuceno. Afanásio ficou sob o risco de uma pena de um a quatro anos. A defensora pública Renata da Cunha Martins, encarregada de representar o perigoso terror dos galinheiros, não se conformou. Recorreu ao chamado “princípio da insignificância”.
Os habitantes do país de que estamos falando têm superstições em relação a frangos. Dizem que eles podem trazer azar, porque andam para trás. Mas, na esfera judicial, o caso das galinhas só andou para a frente. Depois da primeira instância, ciscou pelo Tribunal de Justiça e pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Nenhum deles deu conta de um assunto de tamanha magnitude. Foi preciso mandá-lo para os luminares do Supremo.
Ricardo Giuliani observa que, para chegar lá, a ação pedindo a extinção do processo teve de passar pelas mãos e ocupar o tempo de muitos servidores de salários respeitáveis, representando um custo infinitas vezes superior ao das galinhas. Na primeiro grau, envolveu um representante do MP, um defensor e um juiz. No segundo, um desembargador relator, um desembargador revisor, um desembargador vogal e mais um procurador de Justiça. Chegando ao STJ, teve de passar por ministros e por um procurador da República. Depois disso tudo, caiu nas mãos de Fux, o relator da ação no Supremo.
Fux recebe R$ 32 mil mensais. Cada hora dele custa mais do que as duas galinhas. Se o custo com o processo se limitasse à participação do ministro por 55 minutos, o país já estaria no prejuízo.
– A chance de extinguir uma ação como essa não é a favor do réu, é a favor da sociedade. Mas isso não ocorreu porque o Judiciário não existe para a sociedade, existe para si mesmo – critica Giuliani.
O episódio das galinhas não é isolado. Dois anos atrás, o Supremo teve de desviar a atenção do julgamento do mensalão para avaliar um furto de chocolate. Já foram julgadas também ações relativas a roubo de celular, de garrafa de vinho, de roda de carro e de embalagem de xampu. Para Afanásio, o afanador de penosas, não adiantou sequer ter prontamente devolvido as aves ao seu legítimo proprietário.
ENTREVISTA POR CAIO CIGANA
“O processo nem deveria ter começado” - defensora pública Renata da Cunha Martins
Surpresa com a repercussão do caso, a defensora pública Renata da Cunha Martins, 33 anos, tentou o fim da ação penal. Para a advogada, se a situação fosse tratada como deveria o processo sequer teria começado.
Zero Hora – A senhora imaginava que este caso teria tamanha repercussão?
Renata da Cunha Martins – De forma alguma. Tinha a convicção de que iria resolver o problema no TJMG. Seria trancada a ação porque é visível que não houve lesão grave. Furto de galinha é um exemplo dado até em sala de aula para exemplificar a questão da insignificância. Para a sociedade é muito mais oneroso ter um processo criminal de furto de galinha do que arquivar este processo e deixar que a vítima diretamente tente resolver a situação em um juizado especial ou de forma amigável com o autor do fato. O processo nem deveria ter começado.
ZH – E a situação em si, o rapaz resolveu com o dono das galinhas?
Renata – Não tenho como informar, porque em momento algum tive contato com o Afanásio. Ele nunca procurou a ajuda da defensoria. Nem a família. Isso tudo foi feito sem qualquer contato com ele. O processo veio, ele foi citado para apresentar defesa, mas ficou inerte, não apresentou defesa alguma. Então o processo veio para a defensoria, caiu em minhas mãos e tentei trancar a ação penal de imediato.
ZH – E para que ele teria furtado os animais?
Renata – No processo, ele fala que que não teria sido ele. A história do processo é que houve o furto de um galo e de uma galinha, o vizinho comentou, aí o irmão do Afanásio disse que teria visto ele portando as aves. Então o irmão dele deu esta informação para a vítima. E a vítima procurou a polícia.
ENQUANTO ISSO...
Assuntos que estão na fila do STF
PRECATÓRIOS - Em 2013, os ministros do STF julgaram inconstitucional o parcelamento dos precatórios (títulos de dívidas públicas superiores a 40 salários mínimos) em até 15 anos. Agora, o Supremo precisa decidir como ficará o pagamento dos títulos.
MAIS MÉDICOS - A constitucionalidade do Mais Médicos, uma das principais apostas do governo Dilma Rousseff, é questionada em ações movidas pela Associação Médica Brasileira e pela Confederação Nacional dos Trabalhadores Universitários Regulamentados. As entidades afirmam que o programa promove o exercício ilegal da medicina, oferece serviço de qualidade duvidosa e viola a legislação trabalhista.
DROGAS - Um recurso extraordinário definirá se o dispositivo da Lei de Drogas, que tipifica como crime o uso de tóxicos para consumo próprio, é constitucional. A Defensoria Pública, que questiona a constitucionalidade, diz que “o porte de drogas para uso próprio não afronta a saúde pública (objeto jurídico do delito de tráfico), mas apenas, e quando muito, a saúde pessoal do próprio usuário”.
PLANOS ECONÔMICOS - Quatro recursos extraordinários questionam perdas na caderneta de poupança decorrentes de planos econômicos lançados entre os anos 1980 e 1990. O julgamento começou em novembro, mas os votos do relator e dos ministros ficaram para 2014.
BIOGRAFIAS - A ação direta de inconstitucionalidade (ADI) 4.815, da Associação Nacional dos Editores de Livros (Anel), questiona os artigos 20 e 21 do Código Civil. Segundo a entidade, pela interpretação dada aos dispositivos pelo Judiciário, a publicação e a veiculação de obras biográficas, literárias ou audiovisuais têm sido proibidas devido à ausência de prévia autorização dos biografados ou de coadjuvantes.
COMENTÁRIO DO BENGOCHEA - Este é mais um caso que retrata o tipo de justiça que temos no Brasil e a necessidade de uma urgente reforma judicial, tanto estrutural como administrativa e operacional na aplicação das leis. Enquanto as cortes supremas centralizarem o transitado em julgado de toda e qualquer questão, a justiça permanecerá lerda, permissiva, corporativa, indolente, burocratizada, inoperante, desacreditada e falida. A minha proposta é passar o transitado em julgado (último recurso) para os Tribunais Estaduais e Regionais, salvo para aqueles casos de repercussão federal especificados em lei e em súmulas. Esta medida vai agilizar a justiça, reduzir recursos e tirar a enorme carga de processos que hoje caem nas cortes supremas para poucos juízes decidirem.
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