Limitação de pessoal é entrave para o Judiciário, avalia Pereira
Maurício Macedo
ANTONIO PAZ/JC
''Pela formação do nosso povo, a noção de cidadania é peculiarmente intensa'', diz Pereira
Presidente do Tribunal de Justiça (TJ), Marcelo Bandeira Pereira vem de uma família de forte ligação com o meio forense, onde atuam irmãos e filhos do magistrado. Mas a inspiração para seguir carreira no Judiciário veio do pai, o desembargador Sebastião Adroaldo Pereira, falecido em 2012, aos 95 anos, o qual presidiu a Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris) e o Tribunal de Alçada.
Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, Pereira fala sobre o conturbado início de sua gestão, quando a eleição da nova administração foi contestada por um desembargador do TJ. No dia da posse, uma liminar do Supremo Tribunal Federal (STF) chegou a suspender a validade do pleito, criando uma série de dificuldades. O magistrado também aponta a necessidade de mudar a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). “Existe uma limitação de gastos de até 6% com pessoal. Um poder prestador de serviço, como o Judiciário, não pode ficar com essa amarra, pelo menos, não no nosso caso.”
Além disso, defende a implantação da automaticidade nos vencimentos dos magistrados, para que o reajuste ocorra de forma compulsória, na mesma data e percentual em que forem alterados os subsídios dos ministros do STF. O desembargador também comenta outro tema polêmico: o chamado auxílio-moradia.
Jornal do Comércio – Quais as dificuldades causadas pela liminar do STF que suspendeu a posse da atual administração?
Marcelo Bandeira Pereira – O primeiro dia foi uma coisa que nunca imaginamos que pudesse acontecer. Ficamos atônitos. As ideias que tínhamos sobre como iniciaríamos a administração tiveram uma interrupção. Houve um abalo grande, até porque precisávamos saber o que fazer com a corregedoria. Exigiu muito contato com Brasília, inclusive contato pessoal. Em um primeiro momento, tinha-se a ideia de que a questão poderia se resolver com mais rapidez em relação à corregedoria, mas não foi possível. Passamos a contar com um corregedor provisório, acumulando a jurisdição. Sempre digo que nós tonteamos, mas não caímos. Até que, em determinado momento, viu-se que a decisão poderia demorar. Foi quando o desembargador que estava designado ficou só como corregedor. Mas tudo isso criou um problema em uma área essencial. A corregedoria é o coração do Judiciário. Ocupa-se com praticamente tudo o que diz respeito ao 1º Grau de jurisdição. Claro que continuou funcionando, mas cercada de grande instabilidade.
JC – Isto é página virada ou pode se repetir futuramente?
Pereira – Nunca iria prever que aquilo teria acontecido, mas aconteceu. Falta o mérito da reclamação, que ainda não foi julgado. Espero que não haja reversão deste quadro, mas realmente é difícil saber o que vem pela frente. Espero, sinceramente, para o bem do Judiciário estadual e do jurisdicionado, que não aconteça, para que tenhamos a capacidade interna de resolver nossos conflitos e cheguemos a consensos que impeçam que o jurisdicionado acabe sofrendo as consequências de eventuais desencontros. Espero que tenhamos condições de administrar melhor as nossas diferenças aqui e, se não administrarmos, que tomemos as decisões que os tribunais ou o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) entendam como sendo as corretas. Que isso não gere nenhuma dúvida. No caso, parece que gerou, tanto que houve um deferimento de liminar. Ainda que, particularmente, estivéssemos sempre convictos de que, na eleição, cumprimos rigorosamente a Lei Orgânica da Magistratura. Aliás, exatamente como se fez na eleição anterior, objeto do mesmo questionamento que o STF já havia julgado improcedente.
JC - O que é mais fácil: julgar ou administrar?
Pereira – Administrar é diferente. Na administração do gabinete, tenho condições de programar, estabelecer prioridades, metas. A administração de um Judiciário do tamanho do nosso retira essa possibilidade. Além disso, estamos passando por um processo de federalização. Temos que seguir orientações do CNJ. Compatibilizar as administrações nem sempre é fácil. Até porque as regras estabelecidas podem ter por base um conhecimento do que se passa em outros estados. Eventualmente, experimentamos soluções que vêm do conselho e não se ajustam à nossa dinâmica natural. Às vezes, as coisas aqui estão funcionando bem e se recebe uma determinação, de caráter geral, para mudar tudo, uma inovação de situação em que nós já estamos mais avançados e, a nosso ver, temos que retroceder para nos ajustarmos. Mas isso é algo em evolução. Não estou dizendo que o CNJ seja uma má solução. Tem prestado muitos serviços, e vai prestar mais ainda. É um órgão novo. Está buscando espaço. E os tribunais tentam se ajustar. O maior desafio, em termos administrativos, é conseguir essa compatibilização, equalizar uma administração independente de modo que não nos distanciemos do norte geral que ao CNJ cabe dar à administração do Judiciário nacional.
JC – O que ainda precisa ser implantado na sua gestão?
Pereira – O Judiciário é eminentemente prestador de serviço. Para que possa prestar um serviço como o jurisdicionado gaúcho merece e tem direito, dependemos, basicamente, da ação humana. Para preencher o quadro de pessoal, lidamos com dificuldades orçamentárias. Temos também limitações da LRF. Em face disso, precisamos encontrar soluções para crescer no que for possível. Em várias comarcas, precisamos instalar outras unidades. Ainda temos ofícios privatizados, e já há uma definição do CNJ, há algum tempo, de que os cartórios judiciários devem ser todos estatizados. A prática histórica aqui sempre foi de privatizar. O escrivão era servidor público e embolsava as custas. Em contrapartida, contratava os empregados. Com a necessidade de estatização, precisamos repor esses contratados por funcionários públicos. Hoje, faltam poucas unidades ainda não estatizadas. Precisamos nomear mais de 300 servidores.
JC - O senhor defende mudanças na LRF?
Pereira – Sim. Existe uma limitação de gastos de até 6% com pessoal. Um poder prestador de serviço, como o Judiciário, não pode ficar com essa amarra, pelo menos não no nosso caso. Pela formação do nosso povo, a noção de cidadania é peculiarmente intensa. As pessoas costumam buscar o Judiciário para ver a satisfação de seus interesses. Por causa disso, temos uma estrutura relativamente compatível com a demanda, compatível também com a demanda produzida pelo número de advogados e faculdades de Direito. Quando se tem uma estrutura grande, aí se faz sentir a questão dos 6%. Faço essa ressalva porque este pleito foi encaminhado ao CNJ pela OAB/RS. O TJ também fez esse pleito junto ao conselho porque precisamos da revisão de uma lei federal. Provocamos a fim de que gestionasse a alteração da LRF. Faço essa ressalva em relação ao Rio Grande do Sul, pois, a meu ver, em pouquíssimos estados os 6% se revelam insuficientes. Só onde a estrutura do Judiciário é pesada, que é o nosso caso. Em outros estados, os 6% atendem perfeitamente às necessidades. No nosso caso, não.
JC - É favorável à automaticidade?
Pereira – Tanto somos favoráveis que já encaminhamos projeto à Assembleia. Penso que a automaticidade está diretamente associada ao caráter nacional da magistratura, de algum modo relacionado com a administração do CNJ. Sob o ponto de vista prático, ainda contribuiria para evitar desgastes desnecessários que acontecem cada vez que há a necessidade de se propor uma revisão, que sempre existe, mas com dor. Demora um tempo, mas acaba sendo deferido. Com a Lei de Acesso à Informação (LAI), todo mundo sabe o subsídio que se ganha, sabe qual o reajuste do STF. Então, para o Estado, não há nenhuma dificuldade, até porque o reajuste que resultar da aplicação da automaticidade vai ser dado na medida das possibilidades orçamentárias do Judiciário
JC - Como o TJ está fazendo para se adequar à LAI?
Pereira - Estamos tratando de nos ajustar. Até agora, pelo o que eu soube, decresceu muito o pedido de informações. Não sei se não houve uma frustração, se esperavam achar alguma grande coisa.
JC - Houve polêmica sobre a vinculação do salário junto ao nome do magistrado.
Pereira - Nós não vinculamos. Nós e todos os setores do Estado. A razão pela qual não o fazemos é a seguinte: a LAI não diz expressamente que deva haver a divulgação dos nomes. Não diz, mas a Constituição Federal também não veda. No CNJ e no STF, decidiu-se por publicar, no plano federal e em outros estados. No Estado, temos uma lei que impede a ligação do vencimento com o nome, uma situação legislativa peculiar. Por essa razão especial que ninguém vincula.
JC - A contestação do chamado auxílio-moradia pelo Executivo abalou a relação entre os poderes?
Pereira - As relações são as melhores possíveis, respeitadas, naturalmente, as respectivas competências. Este jogo, que se manifesta na esfera política, faz parte. É natural da existência de Três Poderes de Estado. O manejo, por algum deles, a tomada de alguma providência, está dentro do script. Não há nenhum problema.
JC - Não houve uma interferência por parte do Executivo?
Pereira – Não. Porque esse questionamento do Executivo se dá no plano judiciário. Agora, essa questão da PAE (Parcela Autônoma de Equivalência) já foi decidida pelo STF. No CNJ, já é ponto pacífico. Não foi criação do Estado. Ao contrário. Se não me falha a memória, fomos os últimos a pagar. Somos muito mãos-fechadas em relação ao que se paga à magistratura. Há um bom tempo que o CNJ já entendeu que o juiz tem direito a auxílio-alimentação, que se estendem ao juiz todas as vantagens atribuídas ao Ministério Público. E nós aqui resistimos. Não pagamos nada disso. E não pagamos auxílio-alimentação também. Pagamos a PAE, aquela questão de 1994 a 1997, e só para quem era magistrado neste período. Quem entrou depois não ganha. O juiz não ganha auxílio-moradia. Isso é uma parcela que ficou distante no tempo e que vai se extinguir.
JC – A forma como a imprensa tratou a questão abalou a imagem do Judiciário?
Pereira - Não há dúvida. Quem não compreende bem pode supor que todo mês o juiz ganha auxílio-moradia. Para esclarecer: quem entrou de 1998 para cá não ganha. Já se passaram 15 anos. E, de lá para cá, quantos ingressaram na magistratura? Esses não recebem a PAE. Quem ainda recebe é porque estamos pagando parcelado. Em alguns estados, não pagaram dessa forma. Como nós parcelamos, somos expostos à mesma crítica todos os meses.
JC – Qual a sua análise do julgamento do mensalão?
Pereira – Acho que, como tudo que se passa na vida, tem o lado bom e o nem tão bom assim. O bom foi mostrar que, mesmo com pessoas com o nível dos ministros do STF, existem desavenças. São desavenças em relação ao modo de se aplicar a lei, ao modo de interpretar. O grande mérito foi as pessoas saberem por que se julgou do modo como foi julgado. Quem realmente quis se informar teve a oportunidade. Acho que isso contribui para desfazer boatos que eventualmente possam ser criados. Acho que a transparência contribui para a credibilidade. Particularmente, acho que melhor seriam apenas flashes do julgamento. Chegou-se a um ponto de tamanha transparência que até a imprensa perdeu o interesse. Diminuiu, saturou. Mas acho que o resultado final foi ótimo. Não por ter sido condenado ou absolvido alguém, mas pelo interesse que se deu de saber que os juízes julgam com base em fundamentos.
JC – Como avalia a forma de escolha dos ministros do STF?
Pereira – Não tenho dúvida de que alguma coisa precisa ser melhorada, ajustada, nunca se ignorando que o STF é um órgão político. Presta jurisdição, mas é um dos poderes de Estado. Talvez não se possa pensar na escolha de ministros do STF através de concurso público, como se faz aqui no Estado, mas tem que ser uma escolha diferente.
Perfil
Nascido na Capital, Marcelo Bandeira Pereira tem 59 anos. Formou-se em Direito na Pucrs, em 1976. Após alguns anos como servidor público, está próximo de completar 35 anos na magistratura estadual. Jurisdicionou pelas comarcas de Alvorada, Campo Novo, Garibaldi, Guaporé, São Luiz Gonzaga, Caxias do Sul, Canoas e Porto Alegre. Juiz-assessor da presidência do Tribunal de Justiça (TJ), foi promovido ao Tribunal de Alçada, em 1992, e a desembargador do TJ, em 1998. Atuou como corregedor-geral da Justiça (2002/2003) e, em 2004, passou a integrar e presidir a 7ª Câmara Criminal. Também marcou presença no Tribunal Regional Eleitoral (TRE), ocupando a vice-presidência e a corregedoria (2006/2007), antes de assumir a presidência (2007/2008). Já na 4ª Câmara Criminal do TJ, concorreu e perdeu a presidência da Corte para o desembargador Leo Lima. Dois anos depois, enfrentou José Aquino Flôres de Camargo. Desta vez, após a votação empatada, Pereira foi proclamado vencedor, pelo critério da antiguidade, na eleição mais disputada da história do TJ.
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