Zero Hora 03/03/2015
por Carlos André Moreira
Quem ocupa um cargo muitas vezes não consegue separar a atividade que exerce de sua própria pessoa. O problema não é exatamente restrito a uma categoria profissional, mas há uma questão interessante a se analisar nos recentes casos de micos judiciários protagonizados por magistrados flagrados em falta — de ética ou de noção.
O caso de Flávio Roberto de Souza, por exemplo, da 3ª Vara Federal Criminal, que não apenas dirigia por aí o Porsche Cayenne de Eike Batista, como concedeu a guarda de outro carro do empresário e de um piano de cauda a um vizinho, vem se juntar a outro recente triste momento na história do Judiciário nacional.
No ano passado, no Rio, João Carlos de Souza Correa ouviu de uma agente de trânsito durante uma blitz da Lei Seca que "juiz não é deus". Entrou com um processo pedindo indenização e levou, em sentença continuamente reconfirmada — como se para deixar claro que, sim, é deus sim.
Juízes são, por tradição e protocolo, e até mesmo por ordem direta, dependendo do quanto um magistrado fizer questão disso em uma sala de audiência, chamados de "meritíssimos", um superlativo que tem a função de comunicar que aquela é a pessoa mais "cheia de méritos" do recinto.
É uma fórmula de cortesia que beira a adulação, mas que se tornou, como toda palavra milhões de vezes repetida, um termo com significado em si mesmo: "sinônimo para juiz de Direito", como nossos dicionários mais populares a registram. Talvez fosse o caso de revirar a palavra do avesso até nos lembrarmos do ponto mais importante: de quem são os méritos que estamos exaltando.
Juízes de Direito são pessoas inegavelmente doutas, especializadas em um campo de conhecimento com poder de transformação efetivo na vida pública e que, para chegar aonde estão, passam por várias etapas de um dos concursos públicos mais árduos de um país cheio deles. O indivíduo que se torna juiz, portanto, é, sim, alguém que ingressa na carreira cheio de méritos, mas não é a eles que se alude ao declinar o "meritíssimo".
O que torna o meritíssimo tão cheio de méritos é sua responsabilidade de aplicar o conhecimento da Lei para a solução de conflitos e impasses a serviço da melhor justiça. É a função que é coberta de méritos, não as excelsas pessoas encarregadas de exercê-la. Algumas delas, pelo contrário, parecem querer subtrair méritos do cargo, ao não compreender diferença tão simples.
Não é um problema restrito a uma única categoria. Mas só uma delas arrisca-se a ser alvo do também superlativo "Demeritíssimo".
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