Revista Consultor Jurídico, 28 de dezembro de 2014, 10h20
Por Luiz Flávio Borges D'Urso e Adriana Filizzola D'Urso
É notório que as regras harmonizam e possibilitam o convívio social, e que a sua inobservância fragiliza o Estado Democrático de Direito. Porém, o povo brasileiro vive em uma sociedade, na qual se verifica, cada vez mais, um significativo desprezo pelas regras e a perda de valores como a ética, honestidade, generosidade, gentileza e educação.
No dia a dia, poucas são as pessoas que cumprimentam o próximo, que desejam um sincero “bom dia”, ou que costumam utilizar o “por favor”, “obrigado” e “com licença”. Até porque atualmente as pessoas pouco interagem pessoalmente. Ao se caminhar pelas ruas ou utilizar o transporte público, constata-se que cada indivíduo está abstraído pela tecnologia, com seu celular nas mãos, fone nos ouvidos, em seu mundo particular e privado, sem se relacionar — e muito menos sem se preocupar — com o próximo.
Isso tudo aliado a uma realidade na qual o reconhecimento vem do resultado obtido com o mínimo esforço, somado ao “jeitinho brasileiro” e à cultura de tolerância com os escândalos que infringem os valores acima mencionados e fazem com que as pessoas éticas, honestas, generosas, gentis e educadas se sintam cada dia mais indignadas.
Nesse contexto, surgem os pequenos delitos. Com a ideia errada de que “todo mundo faz”, alguns comportamentos — antiéticos e até criminosos — passam a ser praticados por alguns sem qualquer tipo de vergonha ou pudor.
Para se coibir os grandes comportamentos errados, é preciso começar coibindo os pequenos. Assim, se faz necessário combater os pequenos delitos e, de alguma forma, educar a população para que não pratique condutas que atrapalham a convivência harmônica de toda a sociedade, como por exemplo: estacionar em local proibido, colar na prova, trafegar pelo acostamento das estradas, furar a fila, utilizar as vagas ou assentos reservados exclusivamente aos deficientes, gestantes e idosos, comprar produtos piratas, parar em fila dupla, pular a catraca do ônibus ou metrô, utilizar atestado médico falso, pagar o agente público para se livrar da multa pela infração, copiar trabalho da internet, atravessar fora da faixa de pedestre, dentre muitos outros comportamentos.
É preciso entender que o mundo não é dos espertos, mas sim dos honestos. E que se a vantagem for individual, o coletivo será prejudicado, com reflexos negativos para todos, inclusive para si mesmo. Não se pode querer tirar vantagem em tudo sem suportar as consequências nefastas deste tipo de comportamento. A sociedade não pode transigir com os nossos valores!
Pesquisa feita no último trimestre de 2013 e no primeiro trimestre de 2014, pela Faculdade de Direito da FGV, em sete estados (Rio Grande do Sul, São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco, Amazonas) mais o Distrito Federal, denominada “Índice de Percepção do Cumprimento da Lei” (IPCLBrasil), que, segundo definição em seu relatório, é “um índice de percepção que procura retratar o sentimento da população em relação às leis, bem como analisar a percepção dos brasileiros sobre o respeito às leis e o respeito às autoridades que devem fazer cumprir a lei”, escancara o tamanho do problema a ser corrigido.
Segundo este levantamento, feito numa escala de 0 a 10, sendo que 0 representa nenhum comprometimento e 10 representa um total comprometimento com o cumprimento das leis, o IPCLBrasil é de 6,8. Constatou-se, ainda, que quanto menor a renda e maior a escolaridade, maior é o IPCL.
Interessante ressaltar que, dentre os entrevistados, 72% admitiram ter atravessado a rua em local inadequado e 63% admitiram ter comprado produtos piratas ao menos uma vez nos últimos doze meses.
Outros números extremamente preocupantes são o de que 82% dos entrevistados concordam com a afirmação de que “é fácil desobedecer à lei no Brasil” e 80% dos brasileiros, sempre que possível, acaba optando pelo “jeitinho”, em vez de obedecer à lei.
Infelizmente, o que também se verifica na pesquisa é o baixo índice de reprovação social dos pequenos delitos (50% em média), se comparado aos 88% do furto e aos 82% do ato de dirigir embriagado.
O mais curioso é que atualmente alguns críticos dos grandes delitos, que fazem a censura ferrenha aos corruptos, revelam-se pessoas que quando são paradas em uma blitz e estão alcoolizadas oferecem dinheiro ao policial para se livrar do problema, sem se dar conta que ao praticar este pequeno delito, por assim dizer, estão se igualando ao grande corrupto, pela violação consciente da lei.
Tal fato fica explícito na colocação feita pelo Ministro da Justiça, José Eduardo Cardoso, que afirmou em evento na Associação dos Magistrados Brasileiros, que “o mesmo empresário que por vezes protesta, e com razão, dos desmandos dos nossos governantes é aquele que quando chega um fiscal de rendas diz: ‘bem, como podemos acertar isto?’”.
Imperioso destacar que mesmo sendo pequeno, trata-se de um delito, de um comportamento ilegal ou imoral, o qual não pode e nem deve ser mais aceito pela sociedade. A desculpa de que “todo mundo faz” não dá o direito de fazer também! Ora, se algo é praticado por alguns, ou até mesmo por muitos, isto não faz com que tal ato deixe de ser considerado errado, desonesto ou criminoso, dependendo do caso. Simplesmente, não se deve realizá-lo.
É urgente uma mudança de paradigma, para fazer o que é certo e do jeito certo. A retomada da gentileza e da cordialidade no trato pessoal e a intolerância aos pequenos delitos podem ser os primeiros passos para que se retomem os valores perdidos, a fim de que, no futuro, o Brasil seja reconhecido como o país que parou de dar “jeitinho” e deu um jeito de vez em todos os seus problemas.
Luiz Flávio Borges D'Urso é advogado criminalista, mestre e doutor em Direito Penal pela USP, Conselheiro Federal da OAB, presidente da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim), presidente do LIDE Justiça. Foi presidente da OAB-SP por três gestões (2004/2012).
Adriana Filizzola D'Urso é advogada criminalista, mestre e doutoranda em Direito Penal pela Universidade de Salamanca (Espanha) e integra o escritório de advocacia D’Urso e Borges Advogados Associados.
Por Luiz Flávio Borges D'Urso e Adriana Filizzola D'Urso
É notório que as regras harmonizam e possibilitam o convívio social, e que a sua inobservância fragiliza o Estado Democrático de Direito. Porém, o povo brasileiro vive em uma sociedade, na qual se verifica, cada vez mais, um significativo desprezo pelas regras e a perda de valores como a ética, honestidade, generosidade, gentileza e educação.
No dia a dia, poucas são as pessoas que cumprimentam o próximo, que desejam um sincero “bom dia”, ou que costumam utilizar o “por favor”, “obrigado” e “com licença”. Até porque atualmente as pessoas pouco interagem pessoalmente. Ao se caminhar pelas ruas ou utilizar o transporte público, constata-se que cada indivíduo está abstraído pela tecnologia, com seu celular nas mãos, fone nos ouvidos, em seu mundo particular e privado, sem se relacionar — e muito menos sem se preocupar — com o próximo.
Isso tudo aliado a uma realidade na qual o reconhecimento vem do resultado obtido com o mínimo esforço, somado ao “jeitinho brasileiro” e à cultura de tolerância com os escândalos que infringem os valores acima mencionados e fazem com que as pessoas éticas, honestas, generosas, gentis e educadas se sintam cada dia mais indignadas.
Nesse contexto, surgem os pequenos delitos. Com a ideia errada de que “todo mundo faz”, alguns comportamentos — antiéticos e até criminosos — passam a ser praticados por alguns sem qualquer tipo de vergonha ou pudor.
Para se coibir os grandes comportamentos errados, é preciso começar coibindo os pequenos. Assim, se faz necessário combater os pequenos delitos e, de alguma forma, educar a população para que não pratique condutas que atrapalham a convivência harmônica de toda a sociedade, como por exemplo: estacionar em local proibido, colar na prova, trafegar pelo acostamento das estradas, furar a fila, utilizar as vagas ou assentos reservados exclusivamente aos deficientes, gestantes e idosos, comprar produtos piratas, parar em fila dupla, pular a catraca do ônibus ou metrô, utilizar atestado médico falso, pagar o agente público para se livrar da multa pela infração, copiar trabalho da internet, atravessar fora da faixa de pedestre, dentre muitos outros comportamentos.
É preciso entender que o mundo não é dos espertos, mas sim dos honestos. E que se a vantagem for individual, o coletivo será prejudicado, com reflexos negativos para todos, inclusive para si mesmo. Não se pode querer tirar vantagem em tudo sem suportar as consequências nefastas deste tipo de comportamento. A sociedade não pode transigir com os nossos valores!
Pesquisa feita no último trimestre de 2013 e no primeiro trimestre de 2014, pela Faculdade de Direito da FGV, em sete estados (Rio Grande do Sul, São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco, Amazonas) mais o Distrito Federal, denominada “Índice de Percepção do Cumprimento da Lei” (IPCLBrasil), que, segundo definição em seu relatório, é “um índice de percepção que procura retratar o sentimento da população em relação às leis, bem como analisar a percepção dos brasileiros sobre o respeito às leis e o respeito às autoridades que devem fazer cumprir a lei”, escancara o tamanho do problema a ser corrigido.
Segundo este levantamento, feito numa escala de 0 a 10, sendo que 0 representa nenhum comprometimento e 10 representa um total comprometimento com o cumprimento das leis, o IPCLBrasil é de 6,8. Constatou-se, ainda, que quanto menor a renda e maior a escolaridade, maior é o IPCL.
Interessante ressaltar que, dentre os entrevistados, 72% admitiram ter atravessado a rua em local inadequado e 63% admitiram ter comprado produtos piratas ao menos uma vez nos últimos doze meses.
Outros números extremamente preocupantes são o de que 82% dos entrevistados concordam com a afirmação de que “é fácil desobedecer à lei no Brasil” e 80% dos brasileiros, sempre que possível, acaba optando pelo “jeitinho”, em vez de obedecer à lei.
Infelizmente, o que também se verifica na pesquisa é o baixo índice de reprovação social dos pequenos delitos (50% em média), se comparado aos 88% do furto e aos 82% do ato de dirigir embriagado.
O mais curioso é que atualmente alguns críticos dos grandes delitos, que fazem a censura ferrenha aos corruptos, revelam-se pessoas que quando são paradas em uma blitz e estão alcoolizadas oferecem dinheiro ao policial para se livrar do problema, sem se dar conta que ao praticar este pequeno delito, por assim dizer, estão se igualando ao grande corrupto, pela violação consciente da lei.
Tal fato fica explícito na colocação feita pelo Ministro da Justiça, José Eduardo Cardoso, que afirmou em evento na Associação dos Magistrados Brasileiros, que “o mesmo empresário que por vezes protesta, e com razão, dos desmandos dos nossos governantes é aquele que quando chega um fiscal de rendas diz: ‘bem, como podemos acertar isto?’”.
Imperioso destacar que mesmo sendo pequeno, trata-se de um delito, de um comportamento ilegal ou imoral, o qual não pode e nem deve ser mais aceito pela sociedade. A desculpa de que “todo mundo faz” não dá o direito de fazer também! Ora, se algo é praticado por alguns, ou até mesmo por muitos, isto não faz com que tal ato deixe de ser considerado errado, desonesto ou criminoso, dependendo do caso. Simplesmente, não se deve realizá-lo.
É urgente uma mudança de paradigma, para fazer o que é certo e do jeito certo. A retomada da gentileza e da cordialidade no trato pessoal e a intolerância aos pequenos delitos podem ser os primeiros passos para que se retomem os valores perdidos, a fim de que, no futuro, o Brasil seja reconhecido como o país que parou de dar “jeitinho” e deu um jeito de vez em todos os seus problemas.
Luiz Flávio Borges D'Urso é advogado criminalista, mestre e doutor em Direito Penal pela USP, Conselheiro Federal da OAB, presidente da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim), presidente do LIDE Justiça. Foi presidente da OAB-SP por três gestões (2004/2012).
Adriana Filizzola D'Urso é advogada criminalista, mestre e doutoranda em Direito Penal pela Universidade de Salamanca (Espanha) e integra o escritório de advocacia D’Urso e Borges Advogados Associados.
Texto brilhante! Parabéns.
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