FOLHA.COM, 01/07/2014
Flávia Scabin e Thiago Acca
A intensificação da judicialização do direito à saúde vem gerando polêmica. O principal ponto dessa controvérsia diz respeito à interferência indireta dos tribunais nos orçamentos públicos. Há poucos dias, a Justiça obrigou o SUS (Sistema Único de Saúde) a custear procedimento complexo a ser realizado nos Estados Unidos num custo estimado em até R$ 2 milhões na tentativa de salvar a vida de uma bebê de cinco meses.
As decisões obrigando o Estado a subsidiar tratamentos médicos ou remédios trazem necessariamente impactos financeiros e algumas questões relevantes. O Judiciário deve garantir tudo aquilo que o paciente precisa para ser curado, sem levar em consideração os custos, ou pode se valer de algum critério para a distribuição do direito à saúde?
Qualquer tentativa de responder a essa pergunta deve partir de um dado inquestionável: os recursos são escassos. Se é assim, acrescenta-se muito pouco ao debate o argumento de que o Judiciário apenas poderá atribuir direitos se for possível universalizar a prestação jurisdicional. De um lado, seria impossível assegurar a todos os brasileiros o melhor e mais completo tratamento. De outro, o que seria possível conceder a todos não passaria de tratamentos muito básicos ou ainda da distribuição de remédios baratos como aspirinas ou antigripais.
Considerar o fato de que os recursos são escassos significa que é necessário adotar critérios para se fazer escolhas adequadas. A questão, portanto, é outra: quais são os critérios que seriam adequados para decidir entre aqueles que terão ou não acesso à saúde? Como o Judiciário poderia contribuir para a identificação desses critérios?
A discussão jurídica, e, sobretudo, moral, deve se pautar não apenas em cálculos orçamentários, mas também em critérios de justiça que balizarão as decisões judiciais justificando a concessão, ou não, de um tratamento ou remédio.
Em um dos casos analisado pelo Judiciário em que se discutiu se deveria ser distribuído o coquetel para tratamento do HIV, ponderou-se tratar de pessoa carente requerendo o acesso a tratamento ao qual não faria jus de outra forma. Esse é um raciocínio que o Judiciário é capaz de fazer e se trata de decidir de acordo com um critério de justiça que condiz com a ideia de que não é possível tratar a todos da mesma forma.
Certamente, a Constituição Federal não contém claramente todos esses critérios. No entanto, o papel do Poder Judiciário em casos como a judicialização da saúde é propiciar o debate público. O Judiciário, dessa forma, expõe quais são as condições de justiça de uma política existente ou verifica a necessidade de sua elaboração. Recentemente, o Tribunal de Justiça de São Paulo, sem substituir ou ignorar o gestor público, provocou o Poder Executivo a criar vagas em creches.
A independência e a imparcialidade transformam o Judiciário na instituição adequada para incluir no debate público pautas que estejam fora da discussão no processo político ou das preocupações do mercado. O Direito exige que, em determinadas situações, o Estado justifique sua ação ou omissão proporcionando que aqueles temas minimizados em razão de interesses de determinados grupos ou mesmo ignorados pelo mercado possam vir à tona.
Esse papel pode parecer secundário quando comparado a uma sentença que determine, por exemplo, que o Estado pague ao paciente um tratamento no exterior. No entanto, ao causar uma espécie de "choque" com o Executivo e Legislativo, possibilitará maior controle na elaboração e aplicação das políticas públicas.
FLÁVIA SCABIN, 33, é professora da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas
THIAGO ACCA, 33, doutor e mestre pela Faculdade de Direito da USP, é pesquisador do Centro de Pesquisa Jurídica Aplicada da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vagas
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