José Eduardo Faria e Celso Campilongo
Conscientes da defasagem entre o que ensinam e a realidade social, econômica, política e cultural contemporânea, várias Faculdades de Direito estão reformulando seus currículos. Os programas em vigor foram elaborados com base em alguns princípios fundamentais, como poder nacional, soberania e legalidade. São programas que valorizam os aspectos jurídicos de sociedades circunscritas por fronteiras e marcadas por conflitos basicamente interindividuais e que veem o Estado como um aparato de comando e subordinação, destacando a exclusividade dos tribunais na resolução de conflitos e adotando abordagens pedagógicas de caráter eminentemente forense.
A sociedade, contudo, mudou significativamente nas últimas décadas. Ficou mais complexa, mais funcionalmente diferenciada, tornando-se, assim, menos vertical e mais horizontal. A globalização pôs em xeque a ideia de soberania. A transterritorialização dos mercados de bens, serviços e crédito levou a um processo de convergência, harmonização e unificação de determinados institutos jurídicos. Organismos multilaterais assumiram competências normativas antes detidas pelos Estados nacionais, abrindo caminho para uma governança jurídica de múltiplos níveis. E as questões que dirigentes governamentais e operadores jurídicos têm de decidir adquiriram graus inéditos de especialização, possibilidades técnicas e riscos, convertendo a gestão do conhecimento numa das formas mais relevantes de trabalho das sociedades contemporâneas.
Essas mudanças levaram a política tradicional e o Direito Positivo a perder competência cognitiva diante da velocidade das inovações tecnológicas, da internacionalização da economia e da proliferação de centros infra e supranacionais irradiadores de normas, regras e procedimentos. Se vivemos um momento histórico de grandes possibilidades de conhecimento, também nos encontramos num universo de ignorância com relação aos saberes técnicos de que precisamos para enfrentar e resolver problemas ambientais, questões energéticas, crises financeiras e manifestações sociais.
No campo específico do ensino do Direito, os modos vigentes de entender a sociedade e gerir seus litígios não estão à altura da complexidade de sociedades interconectadas globalmente e marcadas por novos tipos de conflitos, problemas e dilemas. A excessiva ênfase sobre o papel do Estado e do Direito Positivo como meio de controle impede os alunos de prestar atenção aos aspectos cooperativos e cognitivos de governança; não permite que percebam o esgotamento da funcionalidade da política legislativa convencional; dificulta a compreensão do advento de soberanias compartilhadas e de sistemas autônomos e funcionalmente diferenciados com alcance mundial; e desestimula um raciocínio jurídico dos problemas contemporâneos voltado para o diálogo interdisciplinar.
Esses seriam os temas que deveriam balizar a reforma do ensino jurídico. Contudo um exame das propostas que têm sido apresentadas está longe de ser estimulante.
O debate sobre os novos currículos parece hoje:
- Pouco imaginativo por parte daqueles que, algum dia, se autodenominaram “críticos”;
- mercantilista, quando examinado da perspectiva da grande maioria das escolas particulares do País;
- anestesiado, no âmbito das faculdades públicas, que têm perdido tempo discutindo aumento ou redução de carga horária, matérias obrigatórias versus optativas e transferência de disciplinas para este ou aquele semestre;
- e exclusivamente preocupado com o mercado de trabalho de advogados, ou seja, corporativista, pelo lado da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
A que demandas sociais, econômicas, políticas e culturais respondem as Faculdades de Direito? Quem elas devem formar: operadores jurídicos convencionais ou profissionais capazes de integrar uma elite cosmopolita de negócios e uma advocacia pública estruturante? No discurso oficial, o País incorporou milhões de pessoas ao mercado consumidor nos últimos anos e, mesmo assim, elas continuam indo às ruas pleitear direitos. Quais são eles e o que os cursos jurídicos têm que ver com isso? De que instrumentos, plataformas e modelos os estudantes de Direito necessitam para raciocinar juridicamente sobre fatos como esses? Enfim, o que ensinar? Para quem ensinar? De que formar ensinar? Questões como essas têm passado ao largo dos debates das reformas curriculares.
O número de cursos jurídicos na Europa e na América Latina aumentou significativamente nas últimas décadas. Esse aumento é revelador da importância que o Direito tem no mundo contemporâneo. A reforma do ensino jurídico deve responder a este desafio: colocar a educação jurídica em condições de oferecer aos estudantes os instrumentos que lhes permitam entender a realidade da perspectiva especificamente jurídica, mas sem perder a dimensão do diálogo com os demais saberes. Do contrário, o profissional do Direito perderá relevância.
Entre 1945 e 1995, isto é, em 50 anos, a Inglaterra multiplicou 20 vezes o número de Faculdades de Direito. Entre 1964 e 2014 o Brasil multiplicou esse número por 30. Mas uma coisa é fazer esse movimento partindo da tradição acadêmica inglesa, fortemente preocupada com precisão conceitual, rigor metodológico, consistência doutrinária e profundidade analítica; e outra, bem diversa, é tentar feito quantitativamente ainda maior, porém com base num ecletismo vulgar, em inconsistência teórica, falta de rigor analítico e muita verborragia.
RESPECTIVAMENTE, CHEFE DO DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA E TEORIA GERAL DO DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (USP); E CHEFE DO DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA E TEORIA GERAL DO DIREITO DA PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO (PUC-SP)
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