ZERO HORA 26 de fevereiro de 2015 | N° 18085
NILSON MARIANO
JUSTIÇA. O PATRIMÔNIO DE EIKE
EPISÓDIO envolvendo magistrado do Rio de Janeiro que usou carro do empresário Eike Batista avaliado em cerca de R$ 500 mil abre debate a respeito dos limites para as ações de autoridades do Judiciário
Manda a lei que objetos apreendidos em processos judiciais não podem ser utilizados por outras pessoas, mesmo se forem autoridades. Por que, então, o juiz Flávio Roberto de Souza, da 3ª Vara Federal do Rio de Janeiro, decidiu pilotar o Porsche de Eike Batista, além de transferir o piano do empresário para um vizinho de condomínio?
Tão logo o episódio do Porsche foi divulgado, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) lançou nota esclarecendo que a “conduta é vedada a qualquer integrante (da categoria) e, em hipótese alguma, condiz com a postura usual e ética dos juízes”. Ontem, o presidente da AMB, João Ricardo Costa, declarou para ZH:
– É um fato isolado que não abala a credibilidade de 18 mil juízes. Queremos dizer à sociedade que não é uma prática normal.
A atitude do juiz fluminense vem se somar a outros episódios constrangedores (confira na página ao lado). Para o vice-presidente administrativo da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris), Giberto Schäfer, o uso do veículo foi algo “incorreto”, o qual não se espera que seja praticado por um magistrado.
– Não é o procedimento aqui no Estado, nem no Brasil. São atos isolados, que merecem nossa condenação – diz Schäfer.
A seção da Ordem dos Advogados do Brasil no Estado (OAB-RS) é mais incisiva. Secretário-geral da entidade, Ricardo Breier destaca que o comportamento do juiz “foge à normalidade”, ainda mais que ele está na condução do processo contra Eike Batista e deveria ser o guardião do patrimônio. Além disso, Souza e a defesa do empresário estão em pé de guerra desde o ano passado.
– Usar a desculpa de que estava cuidando do carro não se justifica. E se ele é assaltado com o Porsche, ou sofre uma batida no trânsito? Como fica? – questiona Breier, lembrando que nenhum magistrado pode pegar bens depositados em juízo.
AGEM COMO PRÍNCIPES, DIZ FILÓSOFO DA UNICAMP
Ontem, a procuradora-regional da República da 2ª Região, Silvana Batini, manifestou à Justiça que Souza deve ser afastado do processo, além de ter suas decisões anteriores anuladas. Os advogados de Eike, segundo a assessoria de imprensa do Ministério Público Federal (MPF), também pediram ao Tribunal Regional Federal da 2ª Região a retirada do magistrado do caso.
O filósofo Roberto Romano reconhece que há juízes “heroicos”, que não beijam a mão de governantes para chegar às Cortes superiores nem abdicam da independência no trabalho. Feita a ressalva, o especialista aponta que boa parte se porta como “príncipes”, não são magistrados a serviço da população.
– O erro deste juiz é apenas mais uma expressão de arrogância. Há um vezo em desprezar a população – diz Romano.
Professor na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o filósofo alerta que o Brasil não enfrenta uma crise, mas uma “falência ética”. Lembra que a origem dos bens de Eike já é um “atentado à probidade da República”, uma vez que teriam sido adquiridos de forma duvidosa. Em vez de serem preservados para uma eventual devolução de recursos ao erário, foram empregados sem pudor em via pública.
– Até pela gênese do patrimônio de Eike Batista, deveria ter havido mais rigor ético e jurídico – diz Romano.
O sociólogo Emil Sobottka, professor da PUC-RS, também identifica “aspectos de prepotência” no procedimento do juiz. Observa que a debilidade das instituições facilita as manobras de quem busca obter vantagens.
O especialista usa um exemplo do Rio Grande do Sul para reforçar seu argumento: lembra que os últimos governadores utilizaram dinheiro dos depósitos judiciais para pagar as contas. Não deveriam ter mexido nos recursos, simplesmente porque não pertencem ao Estado, afirma Sobottka.
Os depósitos judiciais são recursos depositados por terceiros em conta bancária como garantia de pagamento em processos que dependem de decisão da Justiça. Desde 2004, o governo pode “pegar emprestado” parte dos valores, um mecanismo que se tornou a alternativa para enfrentar a crise financeira.
– O exemplo vem de cima. É muito curiosa a forma como tratam a propriedade alheia – afirma o sociólogo.
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