Frederico Vasconcelos - Interesse Público
Frederico Vasconcelos é repórter especial da Folha
POR FREDERICO VASCONCELOS
“O papel do juiz é muito mais modesto do que se imagina”, afirma magistrado
Sob o título “A entrevista do Ministro Joaquim Barbosa: dos quadrinhos para a vida real”, o artigo a seguir é de autoria de Rosivaldo Toscano dos Santos Júnior, juiz da 2ª Vara Criminal da Zona Norte de Natal (RN) e membro da Associação Juízes para a Democracia. O texto foi publicado originalmente em seu blog (*).
“(…) fora da Constituição não há salvador ou herói. Ademais, a aceitação do utilitarismo e de discursos moralistas-reducionistas, por mais honestos e íntegros que sejam seus emissores, abre as portas à permissividade para a criação de caudilhos – porque o fundamento é sempre o mesmo: o discurso de autoridade lastreado apenas na pretensa boa vontade dessa mesma autoridade. Temos que lembrar que os homens passam, mas as instituições permanecem. Nunca devemos deixar um legado que possa ser mal utilizado no futuro, ainda mais quando a história mostra um mal uso dele.”
Li a entrevista do ministro Joaquim Barbosa. Segundo ele, a mentalidade do juiz “é mais conservadora, pró status quo, pró impunidade.” Já os membros do Ministério Público teriam uma mentalidade mais rebelde, contra o status quo, com pouquíssimas exceções. Segundo ele, ainda, as carreiras de juízes e de procuradores ou promotores de justiça seriam muito próximas. Disse também que ainda que o nosso sistema penal é um sistema “muito frouxo”. E cobrou uma reforma na mentalidade dos juristas.
Creio que a entrevista foi paradoxal em algumas passagens e que, por isso, merece algumas colocações.
As funções de promotor e de juiz são bem diversas e não dependem da mentalidade de cada um. Derivam da Constituição e das leis. Promotor investiga, acusa. Juiz julga. Promotor é parte. Juiz é imparcial. Promotor denuncia, com base em indícios, após um procedimento de natureza inquisitiva e sigilosa. Juiz julga com base em provas, somente após ouvir a antítese, e em um processo que é, via de regra, público. E ai do Estado em que há confusão entre elas. O que ambos têm em comum é a necessidade de respeitar a Constituição. Dela deriva, dentro de um Estado Democrático de Direito, o sistema acusatório, marcado pela separação das funções de acusar, de defender e de julgar.
O sistema penal não pertence ao Judiciário. O papel do juiz, aliás, é muito mais modesto do que se imagina dentro desse sistema. Primeiramente, devido ao princípio da inércia. O juiz não investiga. Ou se investiga, não está agindo como juiz. Só atua nos limites do que lhe chega às mãos e com o que lhe chega. Ademais, o sistema penal é apenas parte do sistema de controle social, que compreende não só instituições públicas, mas privadas também. Desde o Poder Legislativo – que tem a função de criar as normas penais e processuais penais que serão interpretadas pelo Judiciário nos casos concretos; passando pelo Executivo, que cria e mantém os órgãos da Segurança Pública, que previnem e investigam crimes, e o sistema carcerário; pelo Ministério Público, que tem mais de uma centena de atribuições e, entre elas, acusar e fiscalizar o cumprimento das normas por toda a sociedade. Instituições como a igreja, a família e os meios de comunicação também interferem nesse processo.
É reducionista o discurso que acusa a magistratura de modo generalizado e sem levar em consideração essas implicações.
Não nos enganemos: toda solução simples para questões complexas é um engodo. E toda postura de se contentar com respostas prontas, argumentos de autoridade e reducionismos revela deficiente senso crítico. Um existência autêntica requer esforço, e a pior prisão é a da mente que se contenta com o que está-aí-dado. Viver com autenticidade requer reflexão. E uma reflexão dessa ordem engloba – antes de tudo – a compreensão sobre o que se está refletindo numa perspectiva multidisciplinar: social, política, jurídica, econômica e histórica.
Também vejo com preocupação a criação, pela mídia, de uma figura super-heroica, ainda que sua capa seja uma toga. Isso porque como toda criação mítica (e mística), o super-herói precisa de uma antítese. Afinal, que seriam deles sem os vilões. E, claro, o super-herói, com base em sua visão individual, no seu “ideário de justiça” é quem elege quem são os vilões e quem é contrário à sua “justiça”. Mas a vida em sociedade é muito mais complexa do que as histórias em quadrinhos. Mais grave quando estamos a tratar do Brasil, marcado historicamente pelo autoritarismo. O discurso do herói abre as portas para posturas autoritárias, ainda que bem intencionadas e paternalistas. Isso é fruto do nosso próprio processo de colonização, estabelecido por meio de uma invasão violenta que “descobriu” o Brasil, “encobrindo” os nativos e, posteriormente, os escravos. Tudo feito à força pelos “bons”, pelos “homens de bem”.
Se todo agente público tem o poder potestas (o que manda, diretamente), é sempre fundamentado no potentia, o poder difuso e reconhecido logo no primeiro artigo da Constituição. Este deve ser o seu norte de atuação. Portanto, fora da Constituição não há salvador ou herói. Ademais, a aceitação do utilitarismo e de discursos moralistas-reducionistas, por mais honestos e íntegros que sejam seus emissores, abre as portas à permissividade para a criação de caudilhos – porque o fundamento é sempre o mesmo: o discurso de autoridade lastreado apenas na pretensa boa vontade dessa mesma autoridade. Temos que lembrar que os homens passam, mas as instituições permanecem. Nunca devemos deixar um legado que possa ser mal utilizado no futuro, ainda mais quando a história mostra um mal uso dele.
Se formos olhar para trás, esse mesmo discurso utilitarista, desvinculado da normatividade, estava aqui sendo utilizado há menos de quarenta anos… Vivenciamos as trevas de uma ditadura militar faz pouco tempo, também com base em discursos morais. A democracia, por outro lado, exige o respeito às regeras do jogo democrático. E a democracia é algo muito importante para ser posta de lado em nome de utilitarismos. Precisamos ter muita cautela. Uma democracia nunca se consolida. Ela se renova (ou não) a cada manhã. O core, o seu núcleo, reside na obediência às regras do jogo democrático – no respeito aos direito fundamentais. Na entrevista, aliás, não houve acusação de que os juízes desrespeitavam a Constituição. Aliás, só consta uma vez a transcrição da palavra “Constituição” na entrevista, ao tratar da competência do STF. Isso não me passou despercebido e acredito que a muitos também.
Soa paradoxal a afirmação de que o sistema penal brasileiro é “frouxo”. Temos a 5ª população do planeta, mas 4ª população carcerária do mundo: mais de quinhentas mil pessoas presas. E temos, ainda, duzentos mil mandados de prisão não cumpridos. Prendemos muito e prendemos mal. Isso não restou esclarecido na entrevista. O que temos, sim, é uma seletividade penal muito acentuada. Dados estatísticos do INFOPEN, do Ministério da Justiça, apontam que temos duzentas e cinquenta mil pessoas presas por crimes contra o patrimônio, apenas mil por crimes contra a administração pública e, pasmem, só cento e oitenta por tortura. No Brasil, é mais fácil alguém morrer atingido por um raio do que ser condenado por tortura.
Essa seletividade começa já na feitura da lei. Não por menos, um furto qualificado tem pena igual à tortura. A pena de uma sonegação fiscal milionária é praticamente a metade da prevista para o mesmo furto. Nosso sistema penal termina protegendo quem tem contra quem não tem. Ademais, a investigação policial no Brasil é toda direcionada contra as camadas mais pobres. Não existe, sequer, infraestrutura adequada para apuração de crimes econômicos, financeiros ou contra a Administração Pública. Ao invés do trabalho de inteligência voltado à proteção de valores metaindividuais, a brutalidade da criminalidade patrimonial individual e ordinária, das ruas, o que serve para isolar os que já são oprimidos. Protege quem tem contra quem não tem. O discurso reducionista termina por reafirmar essa violência sistêmica, que está diluída secularmente no seio de nossas relações sociais. Apenas bradar que os juízes são pró-impunidade – quando as leis que punem os poderosos é que são brandas – serve apenas para desviar o foco desse problema. Já se tem o herói e agora os vilões: os juízes. Essa ficção vira discurso ideológico da razão instrumental em favor do status quo. Por que não, então, questionar tratamento tão desigual nas leis penais?
Emblemático quando nos deparamos com uma realidade inescapável. O Supremo Tribunal Federal tem uma história de mais de duzentos anos. E quantos foram os mandados de prisão decretados com base em condenações em ações penais originárias? Não seria o discurso mais adequado alertar para a seletividade do sistema penal, reconhecer a responsabilidade do Poder que faz as leis que os juízes aplicam e cada um assumir sua parcela de responsabilidade, proporcional à amplitude do exercício do seu poder? A começar pelo STF? Por que não uma audiência pública para se discutir o foro por prerrogativa de função?
Fora tudo isso, não creio que os problemas do Brasil se resolvam com cadeia. Antes de políticas de segurança pública, precisamos de políticas públicas de segurança (saúde, educação, transportes, moradia, salubridade, etc.). E atribuo um papel mais modesto ao Judiciário nesse âmbito. O governo não é dos juízes. O Supremo Tribunal Federal pode participar, estimulando o debate, desde que respeite a separação de Poderes. Precisamos aprofundar nossa democracia, no sentido de fortalecer o poder potentia (diluído no povo) e não o potestas (o poder delegado), a começar por uma reforma política que melhor combata a captação ilícita de votos, que dê fim aos investimentos privados em campanhas eleitorais (recuso-me a chamar de doação) e que limite a reeleição até mesmo no Legislativo, para evitar a criação de caudilhismos políticos. Precisamos de um marco regulatório do “quarto poder”, um poder de fato e que muitas vezes apenas tem em vista seus próprios interesses. Precisamos democratizar os meios de comunicação de massa, possibilitando a dialética para além do discurso único dos grandes conglomerados midiáticos, de modo a não mais permitir o atual modelo oligopólico que se esconde sob o discurso da liberdade de imprensa, como se essa liberdade só pertencessem a eles. Precisamos refletir sobre nosso modelo econômico e como se implementar uma melhor distribuição de renda. Isso somente para começar.
A entrevista do Presidente do STF, bem como sua vociferação verbal, dias depois, contra um repórter, mostrou o homem por trás da figura midiática do “Ministro super-herói” – mi(s)tificação que, aliás, sequer vi o próprio Joaquim Barbosa aprovar.
Lembro que, quando criança, nunca fui adepto nem da DC Comics e nem da Marvel. Gostava mesmo era do Pato Donald. Meu único herói era meu pai. Mas eu tinha cinco anos. Após isso, cresci sem me afeiçoar a qualquer super-herói e continuo achando que “Liga da Justiça” é coisa de história em quadrinhos. Na vida real, em se tratando de Justiça, o que existe é a necessidade do juiz nunca se afastar do referencial normativo que é a Constituição – com seu catálogo de direitos e garantias fundamentais – materiais ou processuais. Ela é a verdadeira “liga”. Entre o texto e a norma, na interpretação do direito, é o elo que nunca pode ser perdido.
(*) http://www.rosivaldotoscano.com
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