JUSTIÇA E CIDADANIA. 14 de janeiro de 2015
Aurélio Wander Bastos,
Marcos Carnevale
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) vem, desde 2003, sistematicamente desenvolvendo os relatórios “Justiça em Números”, mas, somente a partir de 2012 (tomando como referência a movimentação processual de 2011), os dados de construção linear foram colocados para o conhecimento da comunidade jurídica e da sociedade, especialmente com a organização do Seminário Justiça em Números (2012). Os relatórios são a mais importante iniciativa para a definição de políticas públicas judiciárias no Brasil, visibilizando estatisticamente a máquina burocrática judiciária, divulgando números de processos em tramitação (exceto no Supremo Tribunal Federal – STF), recursos financeiros disponíveis para execução dos serviços dos Tribunais (orçamento/despesas); número de magistrados e servidores e a produtividade judicial (número de sentenças/baixas de processos). As informações e os dados do relatório quantitativo do CNJ, que temos estudado no formato de pesquisa no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), desde o ano de 2012, todavia ganham relevância qualitativa por meio da leitura do cruzamento dos dados lineares que fizemos nesse artigo, permitindo mostrar um Poder Judiciário mergulhado não apenas em conflitos interindividuais, mas também em algumas das mais complexas situações da vida jurídica brasileira.
Atualmente, tramitam na Justiça Brasileira (Relatório de 2014 – dados de 2013) cerca de 95.139.766 milhões de processos (estoque antigo e casos novos). Tomando por base a projeção do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para o número de habitantes no Brasil (200 milhões), conclui-se que para cada dois brasileiros está em tramitação nos tribunais um (1) processo. Desse total de processos, 78% (74,2 milhões) são (foram) de competência da Justiça Estadual (JE); 12% (11,4 milhões) da Justiça Federal (JF); 8% (7,6 milhões) da Justiça do Trabalho (JT); e, finalmente, cerca de 2%, nos demais tribunais (Superior Tribunal de Justiça, Tribunal Superior do Trabalho, Justiça Eleitoral e Justiça Militar). Dessa forma, pode-se ainda observar que, tomando por base a população brasileira, na JE, há um processo para cada 2,6 habitantes; na JF são 17,5 pessoas para um processo; e na JT, há um processo para cada grupo de 26,3 indivíduos, taxa superior em relação a outros países. Na Justiça Estadual de São Paulo tramitam(ram) cerca de 24 milhões de processos, sabendo-se que neste estado temos 2.501 magistrados e, no Rio de Janeiro, 805 magistrados, onde tramitam cerca de 11 milhões e 400 mil processos, cerca de 27% e 12%, respectivamente, em relação ao total dos 95 milhões de casos.
Por outro lado, o total de juízes no Brasil é de 16.281, o que significa que a carga de trabalho para os magistrados é espantosa, pois atualmente a Justiça Estadual tem 11.361 magistrados, o que significa que cada um deles teve, em 2013, sob sua responsabilidade, uma média de 6.531 processos para decidir no ano. A Justiça Federal possui 1.549 magistrados, com uma carga de trabalho média de 7.360 lides. E, finalmente, a Justiça Trabalhista tem 3.371 magistrados, para decidirem em média 2.255 processos. Nossa análise demonstra que, no 1o grau, um juiz estadual produziu em 2013, em média, 1.227 sentenças, e os juízes federais produziram, em relação a cada juiz de primeira instância, a média 803 sentenças. No que se refere a média de sentenças produzidas por um juiz trabalhista está na proporção de 1.128 decisões. Se aumentarmos o corte de comparação, usando grandes tribunais estaduais, como São Paulo e Rio de Janeiro, a distorção é mais grave, em que a média de sentenças por juiz paulista foi de 2.070 decisões e os juízes cariocas sentenciaram, em 2013, uma média de 3.068 processos.
Os dados supramencionados demonstram ainda que, considerando-se que o ano judicial para os tribunais tem 10 meses úteis, que cada mês, em média, tem 20 dias úteis, ou seja, em 200 dias de trabalho, cada juiz da Justiça Estadual no Brasil deveria decidir uma média de 32,7 processos por dia, ou seja, julgar 3,6 processos por hora, trabalhando 9 horas por dia. No que se refere a Justiça Federal, cada magistrado deveria julgar, em 200 dias, 36,8 processos por dia e, por hora, 4,1 processos, trabalhando as mesmas 9 horas. E, na Justiça do Trabalho, o quadro tem uma inversão relevante, pois, em 200 dias de trabalho, cada magistrado julgaria por dia 11,3 processos, e tomando como referência 9 horas de trabalho, 1,3 por hora. A quantificação torna visível a situação numérica dos tribunais, mas é metodologicamente impossível determinar as exatas razões desses índices, considerando, ainda, que os magistrados têm de participar das sessões públicas, de atividades burocráticas, entre outras ações que lhes são designadas.
Para completar a compreensão funcional dos tribunais, o relatório CNJ 2014 demonstra que temos cerca de 400 mil servidores nos tribunais. Mas essas distorções não param por aí: a quantidade de profissionais para fazer processar os conflitos que chegam às serventias do Poder Judiciário também padece de desfuncionalidade, pois sua distribuição, segundo a carga de trabalho, transparece desequilibrada. Seguindo o mesmo raciocínio, adotado para desvendar a carga de trabalho anual de um magistrado, sabemos pelo relatório de 2014 que existem mais de 270 mil servidores na JE; na JF são mais de 65 mil trabalhadores; e na JT são quase 54 mil funcionários. Assim, a carga de trabalho média, anual, respectiva para cada tribunal é de 275 processos por cada servidor estadual; para a JF, a média de trabalho é de 175 processos por profissional; e na Justiça laboral, a carga de trabalho é a menor, com 140 processos em média por funcionário.
Outro aspecto bastante significativo ressaltado pelo Relatório Justiça em Números 2014 é sobre o orçamento disponibilizado para os tribunais, ou seja: quase R$ 34 bilhões na Justiça Estadual, para 78% dos processos (74,2 milhões), o que representa R$ 458,00 anuais por ação. Na Justiça Federal, outros R$ 7,7 bilhões para apoiar o andamento de 12% das lides (11,4 milhões), significando o investimento de R$ 675,00 para cada um desses processos, por ano; e de mais de R$ 13 bilhões para processar os 8% de conflitos trabalhistas (7,6 milhões), o que disponibiliza a quantia anual de R$ 1.710,00 por discussão laboral. De qualquer forma, estes números revelam uma posição realista da Justiça Trabalhista, cujos recursos são 273% maiores que a JE e 153% a mais que a JF. Fica, portanto, evidente que faltam investimentos, segundo a carga de trabalho, desses dois tribunais para que houvesse equanimidade na distribuição de verba.
Dado relevante no conjunto dessas comparações é a informação sobre quem são, inclusive percentualmente, os autores ou réus no conjunto dos mais de 95 milhões de processos, que circularam nas serventias judiciais no Brasil. Para compreensão dessa situação, usamos outra pesquisa do Departamento de Pesquisas Judiciárias (DPJ), do CNJ, de 2011, que aponta quem são os maiores litigantes em nível nacional. Esse relatório demonstra que o setor público federal como autor ou réu litiga em 38% das ações; os bancos também litigam em 38% das ações, o setor público estadual litiga em 8% das ações, as empresas de telefonia litigam em 6%, o setor público municipal litiga em 5%, e outros litigantes chegam a 5%. Isto significa reconhecer que, em mais de 90 milhões de processos, estão envolvidos os Poderes Executivos, em todos os seus níveis, os bancos e a telefonia, deixando-se apenas 5 milhões para outros atores – litigantes.
Sobre esses números, o DPJ (2011) informa ainda que, do total geral como temos observado, estão no polo ativo, ou seja, como autores das ações: o setor público federal com 33%; os bancos com 45%; o setor público estadual com 28%; as empresas de telefonia com 22%; o setor público municipal com 97%; e os outros litigantes com 49%. Assim, esses dados nos permitem inferir que, os cinco maiores litigantes do País, são autores em, pelo menos, 36,1 milhões de processos, mais de 1/3 das ações em todo o país.
Encaminhando uma linha conclusiva, verifica-se que o Judiciário, na órbita da Justiça Estadual, segundo os indicadores do CNJ, dos seus 74,2 milhões de processos, são de execução fiscal, no 1o grau, cerca de 32 milhões de processos (43%). Os grandes litigantes são o estado e o município, que são autores das ações. Esse percentual torna-se mais visível no Rio de Janeiro, pois, do seu total de ações em tramitação, cerca de 62% dos processos são execuções fiscais, e, do total de 25.515.955 de processos em São Paulo, 52% também são executivos fiscais. Esta hipótese final se confirma, verificando-se que, na Justiça Federal, 4,4 milhões (39%) do total de 11,4 milhões de processos (também) são execuções fiscais, mantendo-se a mesma linha dos estados e municípios. Esses dados permitem mostrar que o litigante cidadão não é exatamente aquele que congestiona o funcionamento Judiciário, mas o Poder Executivo federal, estadual e municipal, cobrando impostos. E também o capital, representado pelos bancos e pelas empresas de telefonia, reivindicando seus direitos em relação ao cidadão.
Detalhando em especial essa análise, conforme o gráfico do perfil de processos na justiça brasileira, quanto ao estoque de 2013, o CNJ aponta que, na primeira instância, 43% dos processos concentram-se nos casos não criminais (cíveis); as execuções fiscais são 41%; em terceiro lugar estão os processos criminais com 9%; e 7% tramitam em instâncias superiores.
Finalmente, os dados dessa pesquisa do CNJ permitem demonstrar que o congestionamento do funcionamento do Judiciário brasileiro não é propriamente o alto volume de cidadãos litigantes, como inicialmente se tem levantado, mas o grande volume de ações promovidas pelo Poder Executivo na área fiscal, geralmente tendo no polo passivo os cidadãos. As questões executivas é que congestionam o Judiciário, o que exige profunda reflexão sobre a questão de políticas públicas para o Poder Judiciário.
O Relatório do CNJ nos permite, além de outras importantes observações, perceber, por esse mapeamento quantitativo do Poder Judiciário e respectiva produtividade, que existem pontos de estrangulamento (denominados na teoria de sistemas de entropia negativa e positiva). A fotografia geral, por conseguinte, não esgota os números provenientes dos Relatórios Justiça em Números, mas já são suficientes para a análise de seu impacto na sociedade e para a formulação de políticas que visem a uma melhor prestação jurisdicional, com base em eficiente alocação de recursos para esses fins.
Como providências preliminares, a leitura geral destes dados indica:
Conclusão 1
A relação entre o estoque de processo nos tribunais (95 milhões) e o número de juízes responsáveis pelas decisões, 16.429 magistrados (Relatório CNJ 2014), demonstra que, no Brasil, deveria haver 32.912 magistrados. Uma indicação quantitativa impossível, inclusive porque o referencial de medida não deve ser apenas o estoque de processos, ou o nível de congestionamento, mas permite-se afirmar que tornou-se imprescindível um estudo dos fluxos de processos nos diferentes tribunais, para evitar o que a teoria de sistemas chama de entropia.
Conclusão 2
A quantidade de profissionais para esses tribunais analisados deveria seguir a seguinte ordem: a JE deveria ter 530 mil e a JF deveria ter 81 mil servidores, para se alcançarem resultados acentuadamente positivos no processo decisório, tendo-se como razoável o número de juízes trabalhistas.
Conclusão 3
Os recursos orçamentários são irregularmente distribuídos e, por outro lado, estão fundamentalmente servindo para, senão implementar, movimentar as demandas de autoria do setor público (União, estado e município).
Conclusão 4
Os dados da pesquisa demonstram a necessidade emergencial de se definir uma política de efetivo tratamento das questões executivas fiscais, não apenas porque contribuem dominantemente para o congestionamento do Judiciário, que fica limitado no tratamento de outras ações, mas também porque indicam a gravidade na relação autor e réu no quadro tributário brasileiro, em que o Estado tem posição de absoluto domínio.
Conclusão 5
A leitura dos dados demonstra que a Justiça em geral desenvolve função arrecadatória dominantemente, a partir de recursos orçamentários oriundos do Poder Executivo, assim como originam-se do Poder Executivo, em qualquer de seus níveis, o estoque de processos.