ZERO HORA 10 de maio de 2015 | N° 18158
POR FLÁVIO TAVARES
Quisera escrever apenas de flores e alegrias, jamais de dores ou iras. Ou só escrever de amores, sem mencionar dissabores. Talvez pudesse até rimar em terra ou ar, de ponta a ponta, sem a linguagem tonta que conta do horror e da maldade com o estupor próprio da idade.
Sim, quisera, mas não devo nem caio nesse enlevo! Perdoai- me se, às vezes, sou ácido. Não tenho olhar plácido e olho tudo sem poder ser mudo. Extravaso o que vejo e me nego ao beijo quando a incompreensão esmaga a razão. E, aí, até minha rima se transforma em lima e busco aparar arestas e tapar frestas.
Como posso ser mudo, porém? Em Santa Maria, uma decisão judicial mandou retirar os cartazes em que os familiares das vítimas da chacina da boate Kiss criticavam a inoperância do promotor de Justiça Ricardo Lozza, que, antes da tragédia, inspecionou a casa noturna e a encontrou em condições normais.
Em São Paulo, foram absolvidos os três réus denunciados pelo acidente do avião da TAM, em julho de 2007. A então diretora da Agência Nacional de Aviação Civil e dois diretores da empresa podem se regozijar. A reversão do motor direito do avião (que saiu de Porto Alegre) estava avariada há dias, dificultando frear. A pista paulistana não tinha as ranhuras que evitam a aquaplanagem e, na chuva, o avião deslizou e matou 199 pessoas.
Nada disto pesou e a tragédia passa a ser obra do acaso...
Por que em Santa Maria se proíbe exteriorizar a dor ao denunciar a inação dos que aprovaram o funcionamento da ratoeira licenciada como boate? Ou já perdemos a dimensão do horror e esquecemos os 242 mortos?
Não julgo nenhum juiz nem me substituo à Justiça. Mas vou à liça e peço que a realidade substitua as teorias formais. A decisão judicial diz que (no uso da liberdade de opinar e informar) os familiares das vítimas da Kiss “extrapolaram o razoável”. Mas, apurar responsabilidades não será penetrar nos detalhes, sem medo até do razoável?
Ou a matança caminha para a impunidade absoluta? Já não há presos. Passaram-se dois anos e quatro meses e, a cada dia, as 13 mil folhas do minucioso inquérito policial correm o risco de amarelecer nas prateleiras, enquanto nosso olhar se desvia para absurdos mais recentes.
A Operação Lava-Jato desnudou o conluio entre grandes empresários de obras, políticos e altos funcionários. Mostrou o assalto à Petrobras e abre caminho a identificar os responsáveis por outros focos de podridão, operados por boa parte dos partidos políticos – dos integrantes da base alugada do governo até a oposição.
Já poderíamos, portanto, falar de flores! Mas as flores começam a fenecer, antes até de desabrochar. O Supremo Tribunal mandou soltar os 10 empresários reconhecidamente implicados no roubo, inclusive o articulador de tudo. Para compensar, o doleiro Alberto Youssef (“legalizador” da fraude) foi condenado a outros cinco anos de prisão, junto a três asseclas, no processo que puxou o fio da meada do crime maior – os milhões de dólares que o então deputado Adib Jatene, do PP, enviou ao Exterior.
Pela TV, porém, vimos o advogado do doleiro exultante: “Com a delação premiada, em um ano e meio ele estará solto”, explicou. Dois de seus cúmplices tiveram a pena de prisão substituí- da por “prestação de serviços”...
Ao votar o ajuste fiscal proposto pelo governo, o plenário da Câmara dos Deputados virou circo. Os governistas gritavam e os oposicionistas batiam panelas, como se a arruaça decidisse o destino do país. Legítimo como manifestação de rua, panelaço não é argumento parlamentar.
Entre si, os parlamentares tratam-se de “excelência” e “nobre colega”, mas tudo é tão falso quanto catar flores em meio a maus odores.
Jornalista e escritor
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